Terreiro do Paço

sábado, 4 de outubro de 2014

Solidão

O quarto está mergulhado numa penumbra que não é doce, ou as janelas estão fechadas ou as cortinas corridas, numa cama de lençóis sujos e desmanchados destaca-se uma forma humana de alguém que é velho, tem os olhos fechados mas não dorme, pensa, é um velho que parece mais velho que o velho que é, está deitado apenas de cuecas, pensa nas mulheres que teve, no filho que teve, na vida boa que teve, por vezes alguns desses pensamentos obrigam que uma lágrima lhe escorra das pálpebras fechadas, sente-se só na solidão que realmente tem, é um daqueles velhos que vagueiam por Lisboa sem que o seu vaguear tenha qualquer objectivo, nessas alturas não é velho nem pessoa apenas um andante em busca de nada, talvez secretamente pense que numa qualquer esquina, numa qualquer viela encontre a felicidade perdida mas sabe que tal não acontecerá, sabe apenas que é um derradeiro sonho, deixar de ser andante e voltar a ser pessoa mas é tão difícil ser pessoa numa cidade desumanizada, as “pessoas” passam por ele como ele passa por elas sem nada ver, por vezes entra num supermercado e compra um pacote de vinho daqueles mais baratinhos e é desse pacote que lentamente, gole a gole vai ganhando forças para continuar andante, gosta de andar pela Avenida da Liberdade, ver aquelas lojas chiques onde gente de outras terras, fora deste Portugal que sobrevive, vêem comprar os luxos que nas suas terras não teem, são gente com muito dinheiro normalmente, ou sempre, dinheiro sujo, dinheiro sujo de do sangue daqueles que nessas terras longiquas, daqueles a quem é roubado o pão, a educação, a saúde, tudo, países de pessoas feitas escravas e que no fundo não são muito diferentes deste Portugal que agora temos, talvez a única diferença seja que aqui se diz que vivemos em Democracia e lá, nessas terras distantes chamam-lhes ditadura, mas o velho continua indiferente a estas merdas todas, apenas quer caminhar mais um passo e depois outro até chegar a lado nenhum, tem os sapatos atados com cordéis e uma corda a fazer de cinto naquelas calças que foram de alguém muito mais gordo que ele, o que não é difícil, quem o visse nu veria que os ossos quase lhe rasgam a pele, é quase transparente, no Rossio encontra outro velho como ele que lhe estende uma caixa de vinho do Pingo Doce, ele bebe um ou dois goles e senta-se com o outro velho nas escadas do Metro, ficam ali indiferentes a tudo e a todos, não reparam nos engraxadores, nas gentes que sobem e descem as escadas do Metro nem mesmo no Hara Krichna que por entre fumos de incenso vai tentando vender a sua crença, são fantasmas que por ali estão e passam por isso eles não os vêem, sentem fome mas ainda é tão cedo para irem ao Refeitório dos Anjos, levantam-se e passeiam por entre as mesas do McDonalds e da Casa das Sandes na esperança vã de encontrarem alguns restos que alguém não tenha comido mas é de facto apenas esperança, uma esperança completamente cheia de vã, as “gentes” bem vestidas mas porventura tão miseráveis quanto eles continuam a passar, o não se verem é mutuo, estão agora na metrópole do Martim Moniz onde as raças se confundem, caminham lado a lado mas não falam, o silêncio é a sua pátria, sentam-se a ver aqueles estranhos quiosques pela enésima vez e os pequenos jorros de água que por vezes brotam do chão, as línguas que se ouvem tal como as raças que passam são muitas, ciganos, chineses, indianos, paquistaneses e algumas mais, no ar o que ecoa é sobretudo o gritar das mulheres, mulheres diferentes das que tiveram mas mulheres, a libido é uma coisa que deixaram de ter há muito tempo nem é coisa que queiram recordar, o Sol parece estar agora na vertical, não porque alguém lhes tenha dito as horas mas a experiência diz-lhes que é hora de se levantarem e irem, levantam-se palmilham a Rua da Palma pejada de lojas de chineses que vendem de tudo mas mesmo tudo, passam por uma sapataria que vende sapatos a 5 euros, tivesse ele dinheiro e abandonaria os cordéis, depois a mercearia chinesa, a loja de cutelarias e tantas, tantas lojas, mesmo por mais baratas que sejam estas lojas não são do mundo deles, o mundo deles é o mundo dos miseráveis, o mundo de nós todos melhor ou pior vestidos com ou sem dinheiro no bolso, chegam à Almirante Reis, a diversidade de lojas é a mesma, arrastam os pés pelas pedras do passeio, duma tasca vem um cheiro bom de bifanas, são lhes tão inacessíveis com uma camisa ou um perfume Armani, estão quase a chegar onde querem chegar mas ainda é cedo, chegam áquele jardinzinho da Almirante Reis do qual não sei o nome e sentam-se num dos poucos bancos desocupados, no edifício em frente amarelado e de portas largas já se vê uma fila razoável, entre eles o silêncio continua a ser a única língua que se fala, um levanta-se e o outro segue-lhe o exemplo, atravessam a avenida com cuidado por entre os carros que passam, chegam ao outro passeio e colocam-se no fim da fila, os que os antecedem não são só velhos como eles, nota-se agora uma nova espécie de gente, gente que já não veste assim com cordas a atar-lhes as calças mas de cinto e roupa menos ou nada puída, há também muitos jovens a quem esta coisa que chamam vida atirou para a toxicodependência, o comportamento de alguns destes é diferente, os que já meteram uma dose de morte nas veias estão mais calmos do que aqueles que não tiveram essa sorte, estes estão imensamente nervosos e irrequietos, sentem toda a gente como inimigo, pode ser que de tarde algum expediente lhes proporcione a dose, as portas abrem-se, as pessoas entram ordeiramente sabem que vão saciar o estômago, a tarde ou daqui a bocadinho não sabem como será mas isso também pouco lhes importa, a única coisa que sabem é que a sua vida se faz segundo a segundo e cada segundo que passa é mais um segundo em que adiaram a morte, mas a dor desta espécie de vida permanece e permacerá sempre até que o segundo seguinte deixe de chegar.

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