Largo do Calvário 6H30 da manhã, começam os primeiros
eléctricos, as primeiras pessoas, os primeiros barulhos que me acordam, movo-me
lentamente o corpo está dorido, os pés frios as mãos engelhadas, apesar de
Julho a noite esteve fria ou então não tive cuidado e não usei os cartões
suficientes, as minhas mãos procuram o saco plástico do mini preço onde guardei
o que ontem consegui como pecúlio, é um pecúlio pequeno, uma lata de atum duas
carcaças e um pacote de vinho o que para começar o dia não é nada mau pelo
menos pequeno almoço já tenho.
Soergo-me lentamente com cuidado que os meus setenta e dois
anos já não me permitem grandes veleidades a nível físico, por vezes durmo na
Gare do Oriente mas isso é sobretudo no Inverno onde o rigor do tempo me obriga
a procurar lugares mais abrigados onde me veja protegido do vento e da chuva
mas ali é pior, é um sitio mal frequentado com os miúdos de Unhos e Camarate
que vêem dos bares da Expo já bêbados e se metem comigo parece que teem prazer
em escarnecer dum velho que faz daquele espaço a sua casa, um dia um grupo
deles chegou mesmo a dar-me uma valente carga de porrada sem eu perceber
porquê, as pessoas passavam e não me auxiliavam eu era uma bola pontapeada e
socada por aquele bando de energúmenos que não encontraram nada melhor para
fazer que agredir quem já não se pode defender e os filhos da puta ainda se
riam, fui salvo por dois policias que por mero acaso passaram por ali e fez com
que eles fugissem, os policias até foram simpáticos ajudaram-me a levantar do chão
e vendo o meu lastimável estado chamaram o 112 que me levou ao hospital e
agora, vendo bem as coisas até acho que foi bom terem-me dado porrada porque
passei três dias no hospital sem preocupações de ter que ir inventar comida e
dormir numa cama com lençóis e tudo, pior foi quando os médicos acharam que
estava bom e me disseram “sr. João hoje vamos dar-lhe alta”, ainda perguntei se
podia ficar mais um dois dias mas eles disseram logo que não que precisavam da
cama e para eu ir à Santa Casa procurar
ajuda mas farto disso estou eu.
Como ia dizendo levantei-me devagarinho, arrumei bem os
cartões que atei com um baraço que trago sempre comigo, fiz duas sandes de
atum, dei uns goles no pacote de vinho, fumei um cigarro e pus-me de pé, com
algumas dificuldade é certo, que estas dores que tenho aqui nas cruzes andam a
dar cabo de mim, quando estava em casa da minha filha ali na Quinta do Cabrinha
nada disto me apoquentava mas desde que foi presa por ter morto o marido com
605 forte depois de ter descoberto que ele andava amancebado com a vizinha do
1º andar que a minha vida se virou toda do avesso, a assistente social da
câmara não me deixou ficar com a casa porque eu não estava registado ou
qualquer coisa assim e pôs-me na rua, por causa da falta de um registo qualquer
põem um ser humano na rua, é como se fosse lixo.
Tive que me resignar e fazer à vida que nem reforma tenho,
vivo do que me dão e do que encontro nos caixotes de lixo dos supermercados, por
vezes alguém mais bondoso oferece-me uma
sopa ou uma sandes mas isto não é vida para ninguém e muito menos para um velho
com 72 anos como já vos disse que tinha, vou fazer 73 se nosso senhor me der
vida e saúde no dia 23 de Setembro, dantes a minha filha comprava-me sempre um
bolo e bebíamos um calicezinho de vinho do Porto enquanto ela e o marido
cantavam os “parabéns a você” mas agora os dias são todos iguais, nem anos nem
Natal nem nada apenas dias que passam cada vez mais devagar, mas pronto a vida
assim quis e é assim que vivo.
Já de pé dirijo-me para a rua Alexandre Botelho onde lá mesmo
quase em cima fica o Balneário de Alcântara onde vou tomar banho e fazer a
barba, tenho a impressão que nestes últimos tempos há muito mais gente a usá-lo
porque dantes chegava e entrava logo, agora não, há dias em que até há bichas
de pessoas à espera e não são só pessoas como eu que vivem na rua há pessoas
que até estão bem vestidas e levam um saquinho com o sabonete e o shampoo,
dizem-me que é da crise mas em crise vivo eu há uma data de anos mas pronto
está bem se as pessoas lá vão é porque precisam e eu não tenho nada a ver com
isso, chego ao Balneário mas ainda está fechado só abre às sete e meia, cá fora
sentados nos vãos de escada estão já algumas pessoas à espera, são gente como
eu que passa a vida à espera, o sr. Freitas já lá deve estar dentro que as
luzes estão acesas e olha nem por acaso as portas abrem mesmo agora, entro com
os demais e “bom dia sr. Freitas” “bom dia sr. João precisa de alguma coisa?”
“por acaso hoje até me dava jeito mudar de roupa” o sr Freitas vai lá dentro e
dá-me um saquinho de plástico com umas cuecas um par de meias umas calças uma
camisola e um bocadinho de sabonete “veja lá se isso lhe serve” “serve serve
sr. Freitas, até já” “oh sr Freitas senhor Freitas não se arranja aí uma
giletezinha””tome lá mas depois guarde-a que já temos poucas” vou para o
chuveiro e dispo-me, olho o meu corpo e vejo os ossos à flor da pele, que
diferença faz do corpo que tinha quando era jovem e trabalhava na estiva, tinha
um corpo musculado capaz de fazer inveja a qualquer Tarzan Taborda mas depois
vieram as máquinas que nos substituiram e a pouco e pouco fomos sendo todos
despedidos mas não adianta recordar o passado o que me interessa agora é
sobreviver diariamente, tiro as roupas lavadas do saco que disponho num
banquinho e dispo as que trazia que coloco no mesmo saco para depois as deixar
com o senhor Freitas, a água quente do chuveiro sabe-me bem, ensaboo-me uma
duas vezes tiro a espuma do corpo seco-me visto a roupa lavada e com o mesmo
sabonete com que me lavei dirijo-me aos lavatórios onde passo o sabonete pela
cara e faço a barba, limpo e revigorado dirijo-me para a saída onde deixo as
roupas sujas com o senhor Freitas, “até amanhã senhor Freitas” “até amanhã
senhor João”
Desço a Alexandre Botelho e vou até ao largo do Calvário onde
espero um eléctrico para o Terreiro do Paço, o eléctrico chega eu entro mas
sempre com atenção à próxima paragem não vão aparecer os fiscais, tive sorte
cheguei ao Terreiro do Paço sem aparecer nenhum e aí chegado desço, desço e subo
a rua Augusta até à igreja de S. Domingos onde me sento à porta com uma lata na
frente onde tenho esperança que alguém vá deixando cair alguns cêntimos, entra
e sai muita gente sobretudo turistas que com as máquinas fotográficas me tiram
retratos e alguns até deixam algumas moedinhas, não tantas como antigamente
porque agora há muita concorrência sobretudo de romenas que com crianças ao
colo vão lamuriando qualquer coisa que ninguém entende, eu mantenho-me calado
apenas digo “obrigado” quando cai alguma moedinha na lata.
É meio dia, recolho as moedas da lata e constato que não foi
mau, 3€25, está na hora de mudar de poiso e ir até à 1º Dezembro para a porta
do Pingo Doce, é uma boa hora é a de maior afluência com as pessoas a irem
comprar qualquer coisa para almoçar e por vezes alguém me deixa algo que se
trinque, o lugar que costumo ocupar está hoje ocupado por dois hippies com um
cão, sento-me um pouco mais afastado mas suficientemente próximo para as
pessoas me verem, fico ali até por volta das três, hoje deve ser o meu dia de
sorte consegui dois yogurtes, um pacote de bolachas um pacote de leite e uma
sandes de delicias do mar, como logo ali a sandes e os dois yogurts, as
bolachas e o pacote de leite guardo ou para o meio da tarde se me der a fome ou
para o jantar, já não vou para a igreja de S. Domingos, de tarde é melhor no
Chiado há muitas igrejas e pode ser que tenha a sorte de encontrar alguma sem
ninguém a pedir à porta, subo a rua do Carmo rua Garret e abanco logo na
primeira igreja, não tem ninguém à porta e é ponto de passagem obrigatório,
sento-me ponho a lata à frente e espero, de vez em quando lá ouço o barulho de
uma moedinha a cair na lata “obrigado”, fico ali até por volta das oito quando
o movimento se torna menor é hora de voltar para “casa”, tiro as moedas da lata
e conto-as, junto com as da manhã fiz quase 10€, se todos os dias fossem assim
era bom. Levanto-me subo ao Camões, desço a rua do Alecrim até ao Cais, espero
que passe um eléctrico ou autocarro para o Calvário, chega um e eu entro sempre
com a mesma atenção na coca dos fiscais, chego ao Calvário e são quase nove
horas mas ainda é de dia, vou a uma taberna e peço uma bifana e um copo de
vinho, depois remato com um bagaço, 2€ certinhos, ainda fico com quase 8€ um
pacote de bolachas e um pacote de leite mesmo que o dia amanhã não corra bem
não me preocupa tenho o suficiente para comer, vou até uma loja de
electrodomésticos que tem uma televisão ligada e fico ali a ver até ser escuro,
começa a escurecer e encaminho-me para o mesmo banco de ontem, indiferente aos
poucos olhares que passam tapo-me com os cartões, ajeito-me bem no banco na
espera que o sono venha depressa e ele vem, até amanhã.