Terreiro do Paço

sábado, 4 de outubro de 2014

Por ti

escrevo sobre teu corpo como quem garatuja palavras trespassadas por pétalas de tulipa negra as minhas mãos percorrem-te como quem deseja abrigo em noite de trovoada feita não sabem o caminho mas persistem nessa busca incessante da palavra escondida, por decifrar. escrevo e não rasgo o que escrevo porque a minha pauta és tu que moras bem dentro de mim, nas minhas veias, na minha mente que não mente nem se engana em ti porque és caminho, ponto de partida e chegada raio rasgando o céu em noite escura ou mesmo brisa fresca em tarde quente de Verão. escrevo, escrevo em ti e não me canso deste rápido discorrer da mãos em teu corpo de seda feito ou nenúfar em lago fétido escrevo como sou, raiva, ternura, desespero, desejo, desejo, presente adiado nesta espera feita angustia que te consuma e me consuma nesta feira de enganos em que faço presentes e construo futuros.

Platonismo

Deixa que te leve, anda dá-me a tua mão, neste momento nada mais quero que a tua mão e o teu sorriso, o teu eterno sorriso que ilumina os olhos castanhos esverdeados, “o quê? Julgavas que não sabia a cor dos teus olhos”, sei e sei mais, do teu desenho sei tudo, passo noites e noites a desenhar-te de memória nas coisas que digo ou escrevo, faço de ti musa, meta, chegada, faço de ti todas as coisas que gosto, e gostamos ambos de tantas coisas em comum mas para além dessas coisas que gostamos e sabemos os dois eu sei tantas coisas que não sabes e tu sabes tantas coisas que não sei, porque não deixas que ambos saibamos tantissimas coisas? Mas vou-te contar uma coisa que não sabes, és a minha janela aberta para vida, não isto é mentira sabe-lo bem mas finges ignorar, “sabe agora não estou disponível”, disseste um dia, que me importa que não estejas ou estivesses disponível, esta vida que percorro sem ti é um deserto árido de cactos, e os cactos picam como se me pica o teu não estar, sem ti não caminho, vagueio erraticamente por entre sementes de desejo, sim desejo-te, sem aqui nunca ter escrito isto estou a repetir-me, tenho necessidade de ti como as abelhas de flores e tu és a minha flor, frase pirosa não foi?, que queres nem sempre tenho poesia no que digo, também digo alarvidades, monstruosidades, frases feitas de nada, construo castelos de areia que qual onda em maré cheia te encarregues de destruir, com a onda por vezes vêem lágrimas, mas em que é que as ondas se distinguem das lágrimas? São as duas água e cloreto de sódio, mais nada, prometo-te que nunca mais vou chorar a partir destas palavras vou ondear, sem querer fiz das lágrimas e das ondas sinónimos, palavras diferentes para uma mesma coisa, e o meu gostar de ti porquê? Explica-me que eu não sei, estou como o Peixoto “não tenho resposta para todas as coisas do mundo”, apenas sei a resposta para o um mais um são dois, e eu e tu somos dois quando bem poderíamos contrariar esta lógica matemática e sermos um, unidos pela vontade, pelo desejo pelo beijo, pelas mãos feitas correntes que não quebram, pela vontade de sermos, mas que divagações idiotas que por aqui vou deixando mas sabes, estas idiotices são a forma que arranjei de estar contigo, de te ter, de te ……….., não, não vou dizer isso, imagina apenas o que os pontinhos escondem, nem é preciso imaginares sabes bem o que se esconde por trás deles, podia ser silêncio mas não é, sim é isso mesmo……, esse verbo tão dilacerante “e no principio era o verbo”, um verbo de ser enquanto este verbo implica estar, implica cumplicidades, implica um em vez de dois, também podia escrever que és a minha utopia mas as utopias fizeram-se para se destruir e sabes bem que nunca te destruiria, ninguém destrói aquilo que ………, cá estão eles outra vez os pontinhos, um dia apenas como exercício de estilo vou escrever um texto sem palavras, apenas pontinhos assim deixo às pessoas a liberdade de imaginarem o que se esconde por trás deles, assim uma espécie de Branca de Neve do João César Monteiro, mas para melhor muito melhor os pontinhos são visíveis e a escuridão é a escuridão, a escuridão em que mergulho tão profundamente que quase me afogo, haverá alguém que saiba nadar na escuridão? Eu não sei, vez é mais uma coisa que não sei, só sei coisas em que o interesse é o zero absoluto, não teem validade, não me ensinam a mudar o mundo quanto mais o teu sentir para comigo, por vezes muitas vezes apetece-me ir ter contigo mas esta cidade é tão grande, ínfima no que sinto por ti, onde te iria encontrar será que o deus acaso faria que te encontrasse? Duvido, se nem quanto estamos próximos te consigo encontrar como é que o acaso o faria? Olha vou fechar o computador, fechar as cortinas e transformar-me em borboleta e quando já estiver em forma de borboleta vou esvoaçar pelo quarto permanentemente e desenhar-te, serei só isso um voo em forma de desenho, o teu desenho.

Insónia

Penso que estou insone, penso não tenho mesmo a certeza, há exactamente 23 dias 18 horas e quatorze minutos que não sei o que é pregar olho, já me tinha acontecido quando era mais novo por duas ou três vezes mas nunca com estas proporções, nessa altura a minha insónia resumia-se a quatro ou cinco dias sem dormir, o que ao contrário de agora em que a insónia parece não ter qualquer efeito físico ou intelectual sobre mim naquela altura, quando isso acontecia, ficava um perfeito zombie o meu corpo era um farrapo de vontade e a minha mente parecia ter desertado para parte incerta, era uma cabeça oca e sem qualquer espécie de vontade de transmitir aos outros órgãos do corpo fosse a ordem que fosse, agora pelo contrário até me sinto mais leve, a minha mente fervilha de ideias o que obrigaria, em situações normais, o meu corpo a um esforço sobre humano para lhe poder obedecer. Tudo começou no dia dezoito de Março às três e quarente e três, lembro-me porque nessa noite tinha sido a despedida de solteiro de um amigo e na mesa de cabeceira mesmo ao lado do candeeiro tenho um despertador Sony que vai desfiando as horas em números verdes, estava a dormir quando senti que algo me tocava no ombro, ainda adormecido tentei afastar com a mão aquela coisa que me batia no ombro mas por mais persistente que fosse a coisa era ainda mais persistente, abri então os folhos e com surpresa vejo um pequeno gnomo de barrete vermelho que dançava enquanto teimosamente me tocava no ombro “acordei-te?” perguntou ele, tentei responder que sim mas as palavras ficaram-me presas na garganta, esforcei-me um pouco mais mas as palavras, teimosas, insistiam em não sair. Tentei pôr-me numa outra posição, mais cómoda, mas também não me conseguia movimentar estava invadido por uma paralisia que apenas não me afectava a visão e audição, “fica tranquilo que quando acabar de dançar, e agitava ancas e pés e braços e o corpo todo freneticamente, me vou embora e podes voltar à tua normalidade, normalidade seria dormir de novo pensei, ainda pus a hipótese de ser um sonho mas o gnomo e a sua dança ao som de uma musica para mim inaudível eram demasiado reais e ele parecia não se cansar, “deve ter tomado anfetaminas” pensei, “não, não tomei anfetaminas” respondeu ele como se tivesse ouvido os meus pensamentos, não engoli em seco porque mesmo esse movimento me era impossível, “sabes estou quase a ir-me embora e tu podes continuar com a tua vida”, olhei para o relógio e eram quatro horas e cinquenta e três minutos, quando tornei os olhos para o gnomo já este tinha desaparecido, senti então todo o meu corpo voltar à normalidade, comecei timidamente primeiro pelos dedos dos pés e vendo que obedeciam dirigi-me a todo o meu corpo, tudo estava normal, pus-me em posição fetal, que é a posição em que durmo, mas nada o sono tinha-se ido com o gnomo, também não era grave costumo levantar-me por volta das seis era uma questão de me levantar mais cedo e ler mais cedo no computador as resenhas dos jornais diários, mas em vez disso fui assolado por uma tremenda sede e vontade de fumar, dirigi-me ao frigorifico tirei uma Sagres e acendi um SG Filtro, sentei-me na sala a olhar para o candeeiro da sala onde uma borboleta, talvez uma traça, parecia bailar como o gnomo tinha bailado no quarto, desviei o olhar, poisei a cerveja na mesinha e levantei-me para levantar os estores, como era uma Primavera quase Verão abri também a janela que o calor já se fazia sentir e vi que o dia já clareava, a partir do equinócio da Primavera os dias tornam-se sucessivamente maiores até ao solstício de Verão em que começam de novo a recrudescer, olhei para o relógio de pendulo cinco e quarenta e sete, apaguei o cigarro no cinzeiro, acabei a cerveja dirigi-me à cozinha e fiz um café, sentia-me incrivelmente fresco como se tivesse tido a melhor noite de sono da minha vida, “que estranho devia estar todo roto” pensei, bebi o café, despi os calções e t shirt e fui tomar banho e fazer a barba, sequei-me no velho toalhão preto, sem qualquer preocupação de escolhas vesti umas jeans e um qualquer polo, saí para a rua fui ao único café que aquela hora estava aberto, mandei vir uma bica e um folhado de carne e fiquei por ali a fazer tempo até chegar a hora de tomar o autocarro que me levaria ao trabalho, o dia passou perfeitamente normal, até parecia mais ligeiro, no emprego na fábrica de micro ondas onde tinha a meu cargo a secção de publicidade a malta só dizia “é pá tira esse sorriso da cara”, nem me tinha apercebido que sorria, e passei o dia todo a sorrir e a inventar frases para a campanha publicitária ao novo micro ondas todo xpto que arrancaria em simultâneo com o lançamento no mercado, sentia-me bestialmente criativo, intelectualmente parecia que tinha caído no caldeirão do Obélix, os slogans jorravam abundantemente, guardei-os no computador para quando o gerente mos pedisse lhe pudesse apresentar para todos os gostos e feitios entretanto chegaram as cinco da tarde, despedi-me com um “até amanhã malta”, meti-me no autocarro até ao Carmo, bebi umas imperiais e comi uns croquetes na Trindade fazendo tempo para o jantar, normalmente janto por volta das oito, oito e meia, passo primeiro pelo Pingo Doce onde compro qualquer coisa que seja só descongelar ou compro mesmo comida feita, foi o que fiz nesse dia, comprei um bocado de bacalhau com natas um pack de seis Sagres e aí vou eu até casa onde nada nem ninguém me espera. Cheguei, liguei o televisor como faço todos dias mas devia haver qualquer problema com o cabo já que só transmitia estática com aquele barulho caracteristisco, borrifei e desliguei, tirei um disco ao acaso pu-lo no leitor e dirigi-me à cozinha, puz duas Sagres no congelador e as outras no sitio normal, coloquei um individual na mesa despejei o bacalhau sem aquecer nem nada, o garfo a faca o guardanapo, dei tempo a que a cerveja ficasse fresca e sentei-me a comer, acabei, levantei e lavei a louça, pu-la a escorrer no lava-louça e fui até à sala onde me sentei a ler a Visão da semana passada enquanto ia dando uns tragos de Jack Danniel´s, era o que fazia todos os dias antes de me deitar por volta da meia noite, e entretanto a meia noite chegou, o sono é que não, mais por ritual que por outra coisa despi-me vesti os calções e a t shirt desviei o lençol amarrotado e deitei-me, dei várias voltas na cama, olhei para o relógio, uma e dezassete, três e vinte e três, quatro, cinco seis e eu sem pregar olho mas também não sentia necessidade, se alguém naquela altura me convidasse para um jogo fosse do que fosse estava perfeitamente apto, levantei-me fiz o que fazia todos os dias e lá me dirigi para o trabalho, quando passei pelo espelho que há no átrio olhei para ver se estava com olheiras mas antes pelo contrário até parecia que tinha a pele mais nova “que estranho”, encolhi os ombros apanhei o elevador e chegado ao ao meu andar saí e dirigi-me à minha secretária, esse dia correu, bem como os subsequentes até hoje, de uma forma perfeitamente normal, aí por volta do sexto dia sem dormir pensei em ir ao médico mas já sabia o aconteceria, dava-me uma receita para aviar uns quaisquer suporiferos e assim fui directamente à farmácia, poupei o dinheiro da consulta que converti em packs de Sagres, e comprei uma caixa de Zolpidem. Depois de jantar lá fui até à sala, agora não utilizava o quarto senão para mudar de roupa, vi um bocado de televisão, bebi uns Jack Danniel´s li mais um bocado do livro que estava a ler, tinha-me tornado nestas noites de insónia um leitor compulsivo, e por volta das onze e meia tomei, como o farmacêutico me tinha dito, um comprimido, à meia noite fui-me deitar, mas qual dormir qual quê?, ainda tomei mais dois ou três comprimidos mas o meu corpo parecia imune a essas drogas legais, levantei-me enchi o copo e fiquei com de olhos no livro à espera de clarear. E assim teem sido os meus dias até hoje, já lá como vos disse no inicio 23 dias dezoito horas e quatorze minutos sem dormir mas hoje vou mudar de hábitos, um colega e amigo tem um velhinho Fiat 600 que não utiliza para nada e vou-lho pedir emprestado, assim à noite quando o sono não vier meto-me no carro, faço-me à estrada e vou até à terra dos gnomos na busca do gnomo dançarino pode ser que se o encontrar ele desfaça este feitiço, porque de um feitiço se deve tratar e eu volte a ter uma boa noite de sono, não é que me faça falta mas já não me lembro como é.

Almoço

O tempo não dura todo o mesmo tempo, os momentos felizes durem o tempo que durarem não levam mais que um nano segundo enquanto os tempos que ferem, ferem, ferem, e permanecem, começo assim para dizer que se aproxima a passos muito lentos mais um almoço da eterna Geração Campolide e aqui apetece-me citar o José Luis Peixoto no “Cemitério de Pianos”, diz ele “na hora de pôr a mesa, éramos cinco: o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs e eu, depois a minha irmã mais velha casou-se, depois a minha irmã mais nova casou-se. Depois o meu pai morreu. Hoje na hora de pôr a mesa somos cinco, hoje na hora de pôr a mesa somos cinco menos a minha irmã mais velha que está na casa dela, menos a minha irmã mais nova que está na casa dela, menos o meu pai, menos a minha mãe viúva, cada um deles é um lugar vazio nesta mesa onde como sozinho, mas irão estar sempre aqui na hora de pôr a mesa seremos sempre cinco, enquanto um de nós estiver vivo seremos sempre cinco” e finda aqui a citação do Zé Luis, porque nós somos não sei quantos, alguns já partiram mas estão aqui, como o Helder e o Louro por exemplo, éramos uma cambada de putos que fazíamos as nossas asneiras mas também fazíamos coisas bonitas, e enquanto um de nós for vivo seremos sempre todos, éramos assim a modos que Humbertos Delgados que não éramos generais mas também não tínhamos medo, jogávamos futebol, matraquilhos, o Emideo era o maior, mas também fundámos um grupo de teatro que ainda perdura mas já sem o mesmo nome nem o Joaquim Benite, entrámos alguns de nós para o grupo de balet para conhecer miúdas que não nos passavam cartucho, naquele tempo as classes sociais estavam ainda mais separadas que hoje, íamos aos comícios da C.D.E., organizávamos sessões de poesia, lembro-me da do José Carlos de Vasconcelos e sobretudo da do Mário Viegas de quem alguns de nós nos tornámos amigos, uma vez o Mário eu e mais uns quantos fomos ao Teatro Monumental ver a Amália e passámos o tempo todo do 3º balcão, era o mais baratinho 15 tostões, a jogar moedas de tostão para o palco e a senhora que Deus lhe tenha a alma em descanço não tugiu nem mugiu, e nós gozávamos que nem doidos, eram tempos em que a felicidade de sermos se sobrepunha a tudo o resto, agora não sei porquê, talvez por ter estado no ultimo almoço, veio-me à memória o Paiva nos seus noventa e muitos anos, que foi nosso pai e professor, eram tempos em que apesar da salazarenta repressão éramos felizes porque apesar das brincadeiras inerentes à nossa idade também lutávamos por um Portugal melhor, não este sucedâneo de país que uma corja de delinquentes se entretem a destruir o que construímos e a fazer com que o tempo regrida, mas nós sei-o de certeza feita voltaremos a ter a idade que tínhamos quando tínhamos a idade que tinhamos e não deixaremos, não deixaremos que nos roubem futuro a nós e aos nossos filhos, nem que tenhamos que reabrir a Goa e o Monte Carlo por onde entre cervejas e cigarros combinávamos estratégias para lixar a cabeça aos gajos vestidos de escuro, que sorte que tivemos, que felizes fomos, fazia-nos bem a luta, faz-nos bem a luta, e enquanto um de nós for vivo lutaremos “lutaremos com as armas que temos na mão”, e esse um que cá estiver seremos todos que não se calam nem se rendem. P.S. – Ainda falta muito para o almoço?

Solidão

O quarto está mergulhado numa penumbra que não é doce, ou as janelas estão fechadas ou as cortinas corridas, numa cama de lençóis sujos e desmanchados destaca-se uma forma humana de alguém que é velho, tem os olhos fechados mas não dorme, pensa, é um velho que parece mais velho que o velho que é, está deitado apenas de cuecas, pensa nas mulheres que teve, no filho que teve, na vida boa que teve, por vezes alguns desses pensamentos obrigam que uma lágrima lhe escorra das pálpebras fechadas, sente-se só na solidão que realmente tem, é um daqueles velhos que vagueiam por Lisboa sem que o seu vaguear tenha qualquer objectivo, nessas alturas não é velho nem pessoa apenas um andante em busca de nada, talvez secretamente pense que numa qualquer esquina, numa qualquer viela encontre a felicidade perdida mas sabe que tal não acontecerá, sabe apenas que é um derradeiro sonho, deixar de ser andante e voltar a ser pessoa mas é tão difícil ser pessoa numa cidade desumanizada, as “pessoas” passam por ele como ele passa por elas sem nada ver, por vezes entra num supermercado e compra um pacote de vinho daqueles mais baratinhos e é desse pacote que lentamente, gole a gole vai ganhando forças para continuar andante, gosta de andar pela Avenida da Liberdade, ver aquelas lojas chiques onde gente de outras terras, fora deste Portugal que sobrevive, vêem comprar os luxos que nas suas terras não teem, são gente com muito dinheiro normalmente, ou sempre, dinheiro sujo, dinheiro sujo de do sangue daqueles que nessas terras longiquas, daqueles a quem é roubado o pão, a educação, a saúde, tudo, países de pessoas feitas escravas e que no fundo não são muito diferentes deste Portugal que agora temos, talvez a única diferença seja que aqui se diz que vivemos em Democracia e lá, nessas terras distantes chamam-lhes ditadura, mas o velho continua indiferente a estas merdas todas, apenas quer caminhar mais um passo e depois outro até chegar a lado nenhum, tem os sapatos atados com cordéis e uma corda a fazer de cinto naquelas calças que foram de alguém muito mais gordo que ele, o que não é difícil, quem o visse nu veria que os ossos quase lhe rasgam a pele, é quase transparente, no Rossio encontra outro velho como ele que lhe estende uma caixa de vinho do Pingo Doce, ele bebe um ou dois goles e senta-se com o outro velho nas escadas do Metro, ficam ali indiferentes a tudo e a todos, não reparam nos engraxadores, nas gentes que sobem e descem as escadas do Metro nem mesmo no Hara Krichna que por entre fumos de incenso vai tentando vender a sua crença, são fantasmas que por ali estão e passam por isso eles não os vêem, sentem fome mas ainda é tão cedo para irem ao Refeitório dos Anjos, levantam-se e passeiam por entre as mesas do McDonalds e da Casa das Sandes na esperança vã de encontrarem alguns restos que alguém não tenha comido mas é de facto apenas esperança, uma esperança completamente cheia de vã, as “gentes” bem vestidas mas porventura tão miseráveis quanto eles continuam a passar, o não se verem é mutuo, estão agora na metrópole do Martim Moniz onde as raças se confundem, caminham lado a lado mas não falam, o silêncio é a sua pátria, sentam-se a ver aqueles estranhos quiosques pela enésima vez e os pequenos jorros de água que por vezes brotam do chão, as línguas que se ouvem tal como as raças que passam são muitas, ciganos, chineses, indianos, paquistaneses e algumas mais, no ar o que ecoa é sobretudo o gritar das mulheres, mulheres diferentes das que tiveram mas mulheres, a libido é uma coisa que deixaram de ter há muito tempo nem é coisa que queiram recordar, o Sol parece estar agora na vertical, não porque alguém lhes tenha dito as horas mas a experiência diz-lhes que é hora de se levantarem e irem, levantam-se palmilham a Rua da Palma pejada de lojas de chineses que vendem de tudo mas mesmo tudo, passam por uma sapataria que vende sapatos a 5 euros, tivesse ele dinheiro e abandonaria os cordéis, depois a mercearia chinesa, a loja de cutelarias e tantas, tantas lojas, mesmo por mais baratas que sejam estas lojas não são do mundo deles, o mundo deles é o mundo dos miseráveis, o mundo de nós todos melhor ou pior vestidos com ou sem dinheiro no bolso, chegam à Almirante Reis, a diversidade de lojas é a mesma, arrastam os pés pelas pedras do passeio, duma tasca vem um cheiro bom de bifanas, são lhes tão inacessíveis com uma camisa ou um perfume Armani, estão quase a chegar onde querem chegar mas ainda é cedo, chegam áquele jardinzinho da Almirante Reis do qual não sei o nome e sentam-se num dos poucos bancos desocupados, no edifício em frente amarelado e de portas largas já se vê uma fila razoável, entre eles o silêncio continua a ser a única língua que se fala, um levanta-se e o outro segue-lhe o exemplo, atravessam a avenida com cuidado por entre os carros que passam, chegam ao outro passeio e colocam-se no fim da fila, os que os antecedem não são só velhos como eles, nota-se agora uma nova espécie de gente, gente que já não veste assim com cordas a atar-lhes as calças mas de cinto e roupa menos ou nada puída, há também muitos jovens a quem esta coisa que chamam vida atirou para a toxicodependência, o comportamento de alguns destes é diferente, os que já meteram uma dose de morte nas veias estão mais calmos do que aqueles que não tiveram essa sorte, estes estão imensamente nervosos e irrequietos, sentem toda a gente como inimigo, pode ser que de tarde algum expediente lhes proporcione a dose, as portas abrem-se, as pessoas entram ordeiramente sabem que vão saciar o estômago, a tarde ou daqui a bocadinho não sabem como será mas isso também pouco lhes importa, a única coisa que sabem é que a sua vida se faz segundo a segundo e cada segundo que passa é mais um segundo em que adiaram a morte, mas a dor desta espécie de vida permanece e permacerá sempre até que o segundo seguinte deixe de chegar.