O dentista morreu. Coitado! Pôs-se em cima de um banquinho, não sei, não vi, não estava lá, mas vamos imaginar que foi assim, colocou a camisola de gola alta, subiu para o banquinho um salto para o lado e voilá, já está, todo esticadinho a perninha a dar a dar, deve ter ejaculado, pelo menos é o que me dizem de quem se enforca, e hoje de manhã o André perguntou-me “sabes quem morreu?” “não, quem foi?” “o dr. Saraiva, foi lá que puseste a cremalheira, não foi?” “foi”.
Isto podia ser uma grande tristeza, choros, ladaínhas, carpideiras mas não, não quero que seja assim portanto não vai ser assim, vai ser como eu queira que seja, “o dentista morreu. Coitado!” morreu, mas morreu porque quis, matou-se, enforcou-se, vestiu a camisola de gola alta, esticou o pernil, tudo palavras e frases diferentes que nos encaminham para um mesmo happy end, o “dentista morreu. Coitado!” Quando o André me disse isso lembrei-me que ainda há relativamente pouco tempo tinha estado a falar com ele a respeito das próteses que as queria substituir e tal, as actuais já estão um bocado afanadas, e ele disse que sim e até podia fazer o pagamento faseado o que apesar de mau, fico com menos dinheiro por mês, era menos mau porque não tenho que o dispender todo de uma vez, mas pronto o “dentista morreu, coitado!”, e já não o vou poder fazer, cremalheira marada está cremalheira marada fica, mas seria desonesto se não vos dissesse o que pensei quando soube que “o dentista morreu, coitado!” e o que pensei foi: “se já tivesse substituído as placas ficava com elas quase de borla o gajo morreu” e agora digam-me lá se isto são pensamentos que se tenham quando se fala da morte de alguém? Óbvio que não mas tudo isto é resultado da minha mente distorcida, uma mente de há muito lisergicada ou talvez do que escrevi no inicio o não querer transformar isto numa elegia, antes dar-lhe um ar de vestidinho de verão com mojitos e caipirinhas à mistura, um sambinha de uma “nota só” como música de fundo que sempre é mais alegre e mexida que a marcha fúnebre e para fúnebres já nos bastam os gaspares e coelhos desta terra mas quem deve estar com um ar bestialmente fúnebre é a viúva, ela de negro vestida se for uma mulher à antiga até a imagino de mantilha negra sobre a cabeça “ai Saraiva Saraiva porque fizeste isso” a malta à volta com um ar condoído “os meus pêsames” e ela inconsolável a esgotat o stock de Kleenex, há sempre alguém mais aconchegante que lhe põe a mão no ombro “vá lá Dolores a vida continua”, eu não sei se se chama Dolores mas como Dolores deve vir do latim e significar dor achei por bem dar-lhe este nome, e ela fungando “ai Saraiva Saraiva” e agora para se tornar mais aliciante e dar uma volta nisto o Saraiva levantava-se do caixão “foda-se que nem depois de morto me deixas em paz ele é manicure, cabeleireiro, roupas de griffe sapatos Laboutain, deixa-me morrer descansado”, a malta toda a pirar-se da capela “ai um zombie ai um zombie” e chegados à rua esperava-os um enxame de abelhas que os obrigava a retroceder todos borradinhos de medo a exitar entre as ferroadas ou o voltar para junto de um zombie mas isto era só para dar uma volta à história porque na realidade o Saraiva continua mortinho da silva, todo estiradinho no caixão sem dizer ai nem ui com aquele ar seráfico que só os mortos conseguem ter, inerte e imaculado como quando usava a bata de dentista e de seringa na mão “ora vamos lá então arrancar esse dente”, bem quando foi comigo o meduncho era tanto que enquanto se aproximava de seringa em riste eu ia subindo subindo pela cadeira até estar quase de pé “veja lá se calhar é melhor vir cá outro dia” “não, continue já que vim vamos a isto” e ele na altura foi, agora foi-se.
Pois é “o dentista morreu.Coitado!”, hoje o consultório deve estar fechado, nas janelas aqueles papéis com uma cruz negra que informam que no dia tantos do tal o sr. Fulano entregou a alma ao criador e foi desta para melhor, realizando-se o funeral no cemitério de Arronches de Cima ou de Baixo consoante a idade das pessoas, podendo mesmo aproveitar o local para falecerem também evitando assim incómodos e deslocações desnecessárias à família e amigos, mas isto seria num mundo ideal em que tivéssemos em conta o próximo e os incómodos que lhes pudéssemos causar, se os indivíduos com mais de 45 anos aproveitassem os funerais alheios para morrerem também, este país que se chama Portugal teria uma melhor qualidade de vida para os restantes já que o dinheiro que o estado poupava em reformas e aposentações daria bem para pagarmos menos impostos e até para evitar perguntas incómodas do anibal Alzheimer de Boliqueime “mas o que é preciso fazer para que em Portugal nasçam mais crianças?”, se ele não sabe posso explicar-lhe, bem mas para terminar e já que o “dentista morreu. Coitado!” mas também para que não me acusem de incoerente com o que acima deixo escrito aviso já que morra quem morrer a partir de hoje eu “Nandinho o homem bomba” aproveito para esclarecer desde já os futuros defuntos que morra quem morrer a mim é que não me apanham lá.