Terreiro do Paço

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A Tasca

Nesta tasca com as mesas cobertas de copos de bagaço, cartas, tremoços e mines com homens à volta, estou eu.
Sinto-me cercado da solidão de estar só, um estranho entre estranhos, e é nesta altura que quero ser bola saltar para além daquelas paredes infestadas por cagadelas de mosca, cartazes do Benfica e do Eusébio, calendários com mulheres s como os que vemos nas oficinas de mecânicos de automóveis, para ver como è a noite lá fora. Na mesas os homens estão ocupados com cartas, tremoços, bagaços e mines, alguns porventura estarão desocupados de vida, mas estão. Eu, eu sou apenas o observador que observa, um estranho entre estranhos, ninguém me repara, nem em mim nem nos homens das outras mesas apesar de por vezes trocarem monossílabos e se rirem, cada mesa é uma ilha e todas juntas formam um arquipélago chamado tasca. É nesta tasca que vou permanecer até que talvez uma rabanada de vento mais forte entre por aquelas portas e me leve, ou uma fada carregue comigo em suas asas de fada, mas não, nem rabanada de vento nem asas de fada apenas eu e o meu eterno dilema de querer ou não querer, de permanecer ou partir mas desta vez resolvo o dilema e fico. Dirijo-me ao balcão e balbucio “um bagaço”, a mulher de lenço negro por trás do balcão dobra-se e tira uma garrafa, puxa de um copo sujo de sarro e muitas bocas e enche-o até entornar daquele bagaço que emborco de um trago e me pega fogo à garganta, “outro”, a senhora do lenço preto repete o ritual no mesmo copo, olho para as mesas e homens batem forte com as cartas e dizem “toma”, “bagaço, bagaço, bagaço” ritual ritual ritual, a sala parece querer dançar comigo, “o senhor não é daqui pois não?” “não, sou de Lisboa mas de onde queria ser era de lado nenhum e de todos ao mesmo tempo”, a senhora ficou com uma cara apalermada a olhar para mim como quem diz “que homem tão estranho” mas respondeu “vê-se, não tem as mão calejadas” “ham?”, volto a olhar os homens as cartas os tremoços e as mines, uma fina neblina entrepõe-se agora entre mim e eles, esfrego os olhos mas não resulta e faço olhos de cobra mas a neblina continua, as pernas parecem já não querer suportar o peso do corpo e apoio-me com força no balcão, “o senhor está bem?” “essstttouuu” “se precisar de alguma coisa diga” e eu não digo, não digo da cidade que ficou para trás, do filho que ficou para trás, do gato que ficou para trás, da namorada que ficou para trás, dos amigos e colegas que ficaram para trás, a vida que deixei para trás e não quero mais viver. “bagaço bagaço bagaço”, ritual ritual ritual, as pernas parecem querer desistir mas sou mais teimoso e finco-me com mais força ao balcão, “quanto é?” deixo o dinheiro no balcão, “guuaardeee o trooocooo faz faaavooor”. Tento afastar-me do balcão mas agora é ele que parece não querer-me largar, jorro-me para o chão, nado entre beatas, cascas de tremoços, cápsulas de mines, restos de cigarros e outros lixos muitos lixos, os olhos dos homens parecem ter ficado parados naquele ser rastejante que era eu, no meu lento rastejar consegui alcançar a porta, transpu-la, a noite era já toda, o frio e a suave geada que caía não me puseram de pé, continuei rastejando até ao carro, os homens tinham todos mais a senhora assomado à porta, perto do carro consegui meter a mão no bolso retirar o comando e carregar no botão, o carro respondeu-me com um piscar de faróis, a custo abri a porta e icei-me para um banco, recostei-me, tentei atingir o botão do rádio mas ele fugia, recostei-me no banco e fiquei, devo ter tombado sobre o outro e adormecido durante não sei quanto tempo.
De repente dois ou três toques na janela acordaram-me sobressaltado, era a senhora da tasca, cuspi nas mãos e esfreguei os olhos “então dormiu aqui?” “dormi” “sente-se bem?” “sinto, sinto, desculpe posso utizar a sua casa de banho só para lavar a cara?” “pode, esteja à vontade”, sigo a senhora e era como se fosse a primeira vez que a via, não era só o lenço que era preto, toda a roupa era preta, a cara enrugada como uma camisa por passar a ferro, o lenço deixava ver umas madeixas de cabelos brancos como a neve e a boca não tinha dentes, arrastava os pés como se lhe fosse penoso caminhar apesar de o corpo curvado se apoiar num pedaço de madeira.
Chegámos à porta tasca, a senhora pôs a mão no avental e puxou umas pesadas chaves de ferro com que abriu a porta, entro na tasca, “onde é a casa de banho” “é ali  por trás daquelas pipas”, vou, entro, o ar tresandava a mijo e eu olho-me no espelho, tenho os olhos vermelhos e a pele amarelada, barba de três dias, abro a torneira que deita uma água acastanhada que passo pela cara e pelos cabelos, saio, dirigo-me à senhora que já tinha aberto as janelas, o chão continuava sujo como na(s) noite(s) anterior(es).
“Tem alguma coisa que se coma?” “tenho broa, chouriço torresmos e pere aí que vou ver se o requeijão já chegou” “se houver requeijão quero requeijão” “tá com sorte o António já cá mos deixou” “é mesmo isso” a senhora cortou grosseiramente umas fatias de broa que colocou num prato, o requeijão noutro prato e talheres nada “que se lixe vai mesmo à mão” pensei, “dê-me um copo de tinto” e a senhora foi ao barril encheu o copo e pô-lo ao lado dos pratos. Meti a mão no bolso puxei da caixa do Gurosan, retirei um que dilui no copo de vinho e tiro também um Tylenol para as dores de cabeça que me rebenta.
Como, pago, “até um dia destes” “até um dia destes e tenha cuidado”, dirijo-me para o carro, agora de pé, puxo do comando e ele responde-me de novo com o piscar de faróis, abro a porta e só então reparo no imenso vomitado, abro o porta luvas tiro uns Kleenex com que limpo o meu banco, recosto-me no acento, enrolo um Amber Leaf e olho à volta, meia dúzia de casas e um chão de terra “como cheguei aqui?” interrogo-me, três ou quatro mulheres velhas passaram pelo largo de lenço e chinelo de trança, homens nenhum, já deviam ter ido para o campo, apenas alguns cães farejavam o carro e ladravam.
O Sol começou a aquecer e a ferir-me os olhos, pus os óculos escuros, ligo a ignição recosto-me e dou umas aceleradelas, “vrum vrum”, ligo o rádio e fico mais um tempinho, o tempo pode esperar, reparo no G.P.S. mas nem lhe toco desta vez à razão costumeira, detesto aquela voz monocórdica “vire na próxima à esquerda, siga cem metros em frente blá blá blá”, juntei mais uma, é que tinha que marcar um rumo e isso eu não sabia, de tudo apenas sabia uma coisa é que voltar para trás não voltava, soltei o travão de mão, carreguei na embraiagem meti a primeira e arranquei, para onde? Não sei mas talvez um dia nos encontremos por aí.  

A Tágide

Gosto de ir comprar peixe à Trafaria, mais concretamente aos pescadores da Trafaria, apanho o cacilheiro em Belem, faço escala no Porto Brandão e por fim lá estou eu na Trafaria mesmo perto do sitio onde os pescadores deixam os barcos ao largo metem-se em botes e trazem o peixe até à praia para depois o levarem à lota e é neste trajecto entre a praia e a lota que abordo os pescadores para saber se trazem alguma coisa que me agrade.
Pois bem, ontem decidi ir à Trafaria ter com os meus amigos pescadores para ver se conseguia comprar um linguado e um Kg de ameijoas, apanhei o barco em Belém, fiz a tal escala no Porto Brandão, ia sentado à proa no exterior para sentir o cheiro do tejo e o vento na cara, quando de repente como que vinda do nada salta uma tágide que cai mesmo a meu lado no banco, “olá” disse ela, “olá” disse eu, não sei se sabem mas as tágides são as ninfas do Tejo e a quem o Camões pediu inspiração para escrever o calhamaço dos Lusiadas, bem olhei para a gaja e até à cintura era um deslumbre, cabelos pretos compridos sobre os ombros, olhos verdes, lábios carnudos, morena umas maminhas que fariam invejam até à Courtney Cox, torneada até à cintura e pronto quando os meus olhos desceram da cintura é que ficou tudo lixado, não é que a gaja da cintura para baixo era peixe? “porra” pensei de mim para mim “qué que faço com isto?” mas como me prezo de ser um tipo bem educado fingi que não reparei em nada e comecei a falar com ela, “então qué que fazes por aqui?” “olha já estava farta de nadar e decidi vir ver como era isto cá por cima” “e então tás a gostar?” “ainda não sei” eu não lhe tirava os olhos das mamas, torneadinhas com uns biquinhos rijos e empinados a minha boca desejosa de chupá-las mas é pá quando os olhos chegavam à cintura é que ficava de novo tudo lixado e lá se ia a vontade de maminha e tudo o resto mas pronto um gajo para estar bem consigo próprio tem que se contentar caquilo que tem e o que eu tinha era uma mulher boa comó milho até à cintura e corpo de peixe daí para baixo, ela meneou a cabeça os cabelos esvoaçaram soltando um leve odor a algas e  maresia que por momentos quase me enebriaram totalmente os sentidos, olhei-a nos olhos e “como é que é aquilo lá por baixo?” “olha é uma pasmaceira só  se veem cardumes de sardinhas, carapaus, sardas e alguns outros peixes que nem deves conhecer” “quê pões em causa os meus conhecimentos sobre fauna marinha? Se fosse assim comé queu sabia queras uma tágide?” “não fiques prái todo abespinhado, pronto não interessa o facto é que aquilo é uma pasmaceira” “mas pasmaceira porquê?" "olha tu sabes que as mulheres sejam elas tágides ou não teem as suas necessidades e lá em baixo não há nada, nem centros comerciais, nem tágidos, nem cafés a única coisa que existia era um salão de estética mas agora o sacana do Neptuno aderiu à Al Qaeda e quer-nos obrigar a usar burka” “porra isso deve ser lixado” “então porqué que julgas que estou aqui a falar contigo? Fartei-me e decidi pirar-me” “se quiseres posso levar-te a um salão de beleza” “isso era fixe” enquanto estávamos nesta conversa ouviu-se o bu bu bu do barco, sinal que estávamos a chegar ao cais, ela pareceu assustar-se mas tranquilizei-a logo “não te preocupes é sinal que estamos a atracar”, ouviu-se o parar dos motores, o cacilheiro encostou suavemente no cais sem no entanto deixarmos de ouvir por duas ou três vezes o embate dos pneus do casco na amurada, ouviram-se as vozes dos marinheiros, o estender do passadiço de madeira, as correntes de ferro a enrolar nos postes do cais até que o silêncio imperou, para não dar muito estrilho deixei que todas as pessoas saíssem, o barco ia cheio é Agosto e a plebe lisboeta ia para o Bico da Areia saborear a praia, malta nova, muita malta nova com as pranchas de surf debaixo do braço mas estes não deviam ir para o Bico da Areia, deviam ir apanhar a camioneta para a Costa onde as ondas são muito mais violentes, ali o mar é flat. Ela parecia espantada e assustada com todo este movimento, dei-lhe a mão e convidei-a a sair, ela levantou-se do banco, pareceu ter uma certa dificuldade em equilibrar-se nas barbatanas caudais, como algumas mulheres em salto agulha, mas com a minha ajuda e com o parar total do cacilheiro conseguiu equilibrar-se e devo confessar que até tinha muita elegância  no andar, descemos passámos o passadiço e eis-nos em terra, os olhos de toda a gente colaram-se em nós, um homem com uma coisa metade peixe metade mulher co as mamas à mostra e ainda por cima boa até dizer chega  da cintura para cima, não me importei fiz-me indiferente e convidei-a para tomar qualquer coisa no café mesmo em frente à estação fluvial “teem peixe?” perguntou ela “não devem ter ainda é de manhã mas bebes um café e comes uma torrada” “o que é isso” bem, tive um trabalhão para lhe explicar mas mesmo assim não consegui, ela tirando peixe e marisco não conhecia mais nada, pensei que a melhor forma era ela experimentar, nesta altura já éramos seguidos por uma tremenda multidão, tive mesmo receio que houvesse um motim mas entretanto alguém chamou os geninhos que estabeleceram um cordão de segurança à nossa volta e nos permitiu entra pacificamente no café, a dona do café começou logo aos gritos a dizer que não queria coisas daquelas com as mamas à mostra no estabelecimento, valeu-nos o comandante dos geninhos que interferiu em nosso favor e ela renitente lá acedeu a servir-nos “qué que desejam?” “pra mim é um café e para a tágide é um UCAL de chocolate e um duchaise” , contrafeita lá se dirigiu ao balcão de onde nos trouxe o que tinha pedido e colocou com maus modos na mesa “que merda agora nem me deixam entrar clientes por causa destas duas coisas, sempre quero ver quem me vai indemnizar”, eu num copo deitei-lhe metade do leite  e apontei para ele e para o duchaise, disse-lhe “prova” ela tímida mas graciosamente lá levou o leite e o duchaise aos lábios “hum é bom” “vês aqui tens mais variedade de coisas escusa de ser sempre peixe ou marisco” “posso comer outro?” “podes” mandei vir outro duchaise e pedi logo a conta não fosse ela abusar que isto de alimentar uma tágide em terra já se estava a tornar dispendioso, a resmungona da dona lá trouxe um talão num pires que colocou em cima da mesa “é uma factura se faz favor que isto comigo não há cá mercados paralelos” a resmungona foi buscar a factura “qual é o seu nº de contribuinte?” disse-lhe, escreveu e passou-me a factura, levantámo-nos e dirigimo-nos para a porta, a multidão era agora muito maior mas protegidos pelo cordão lá consegui ir ter com o Zé Bexiga, é gaivota que é o nome que na Trafaria dão aqueles que ajudam os pescadores a trazer o peixe para terra, “qué que tens hoje?” “tenho carapaus e robalos” ele levou-nos lá para trás para as barracas dos pescadores e comprei dois robalos e um quilo de carapaus, antes de pagar o Bexiga segredou-me ao ouvido “queres trocar a gaja por peixe?” “és doido ou quê?” “é pá não te chateies só perguntei é que lá em casa tenho uma banheira grande onde ela podia estar quando eu estivesse em casa e de dia trazia-a aqui pró cais e ela andava à vontade” “deixa-te de merdas achas que vou fazer tráfego de seres meio humanos?” “tu é que sabes mas ainda tarranjava umas ameijoas” “vai à merda”. Vinhamos embora quando como que surgindo do nada apareceu um jipe com uma espécie de piscina num atrelado com os símbolos do Oceanário, pararam e saíram dois gajos em calções, os cabrões dos geninhos tinham telefonado para o oceanário, posteriormente vim a saber serem biólogos marinhos, “isto é uma descoberta incrível para a ciência” “quem sabe se não ganhamos um Nobel”, dirigiram-se a mim “esta sereia é sua?” “sereia? Mas vocês não veem que é uma tágide?” “tágide qué qué isso?” “porra não me digam que não sabem” “não não sabemos” “olhem eu também não vos explico mas sempre acrescento que se não fossem elas não havia Lusiadas nem aqueles cantos todos que aprenderam na escola” “cantos cá está sempre é uma sereia” “porra que vocês são mesmo burros já vos disse que é uma tágide” “bem tágide ou sereia isso agora não interessa nada estamos aqui para a levar” “e já lhe perguntaram se ela quer ir?” “queira ou não queira vai, é uma descoberta cientifica” ainda barafustei, ela parecia assustada e permanecia muda e queda, mas não adiantou de nada o meu barafustanço que o comandante dos geninhos veio logo ter comigo “temos ordens para estes senhores levarem a sua amiga”, não havia nada a fazer eram muitos e tinham cassetetes. Meteram a tágide na piscina mediram-lhe a tensão, auscultaram-na, mandaram-na abrir a boca e fazer “ah” “parece estar em perfeitas condições”, antes de irem embora foram cumprimentar e agradecer ao comandante dirigiram-se a mim deixaram-me um cartão do Oceanário com o nº telefone “se quiser ver a sereia telefone-nos que nós marcamos a visita e não paga nada”, mandei-os novamente à merda e fiquei ali, eles arrancaram, a multidão dispersou, o cabrão do Bexiga chegou ao pé de mim e disse “quem ficou a perder foste tu agora nem sereia nem robalos nem ameijoas nem nada” “vai pó caralho” e vim-me embora, esperei pelo cacilheiro, por acaso até estava chateado mas se calhar até foi melhor assim, afinal o que é que eu ia fazer uma tágide em Lisboa, nada de certeza e em casa mesmo que ela estivesse sempre na banheira ainda corria o risco de o Lótus, o meu gato, lhe comer o rabo e assim vir a ser constituído arguido pela pj por cumplicidade no assassínio de uma tágide, comecei a esquecer o assunto vim até ao deck fumar um cigarro enquanto pensava nos belos robalinhos que ia grelhar para o almoço e vocês se quiserem ver a tágide, agora penso ainda não ser possível porque deve estar a ser observada e sujeita aos mais rigorosos exames, é só daqui a uns tempinhos irem ao oceanário mas antes para o choque não ser muito grande passem pelo parque das tágides no Parque das Nações, vejam as do Cutileiro e assim sempre teem uma espécie de briefing para a visão da tágide nadando entre tubarões martelo, chernes, raias, garoupas e outros peixes num daqueles enormes aquários do Oceanário de Lisboa mas antes passem pelo Peter´s bebam um gin e até podem deixar um pago em meu nome porque se não fosse eu a contar-vos esta história não tinham consciência da real existência de um ser que até agora se pensava mitológico.


Reencontro

No passado Domingo como sabes reencontrei-te, tinha ido ao Museu de Arte Moderna da Gulbenkian ver a exposição do Muntadas, foi de manhã, depois da exposição decidi dar uma volta pelo jardim e vi uma mulher bonita, sentada na relva com um livro entre mãos, achei essa mulher tão bonita que de longe sem que se apercebesse lhe tirei uma fotografia, cabelos loiros, saia comprida de ganga, t shirt branca, ténis, sentada na relva sobre as pernas dobradas, aproximei-me assim de soslaio ou como a nuvem que sorrateiramente surge num céu azul de Verão e quanto mais me aproximava mais me parecia conhecer aquela cara aqueles cabelos aqueles olhos, sentei-me também na relva perto de ti mas nem olhaste, tentei atrair-te a atenção mas ou estavas presa na leitura ou não ligaste mesmo nenhuma, simulei tirar fotografias, tossi, agitei-me mas nada e nessa altura só queria confirmar que eras tu, eu sabia que eras tu mas queria ter mesmo a certeza que que eras tu, sim é verdade passaram muitos anos mas aquela mulher ali sentada eras tu, puxaste de um cigarro e eu pressurosamente “quer lume?” “obrigado, tenho aqui” “és tu?” “Fernando?” “sou, que prazer ver-te”, foi o rastilho que despoletou a conversa e as memórias, “estás igualzinha, pareceste-me tu mas quis ter a certeza” “já me tinha apercebido de um parvo a tentar chamar-me a atenção” “pois parvo é o meu nome” riste com o mesmo riso de quarenta anos atrás, brincaste “sou o Fernando Monteiro” tentando imitar uma voz de homem. “foi assim que nos conhecemos, lembras-te?” “lembro, na esplanada do Parque estavas com a Paula” “sabes foi essa tua, como hei-de dizer, certeza em ti próprio que me fez reparar em ti” “eu reparei em ti apenas por ti” “deixa-te disso” “ verdade juro-te” “já conhecias a Paula não conhecias” “conhecia” “eu foi a primeira vez que fui à esplanada” “decerto que sim se lá tivesses estado antes eu tinha reparado em ti” “mentiroso” “não, não, eras linda e continuas linda” pareceu-me que ruborizaste um pouco mas não te disse nada a ti que em tempos tinhas sido a minha pedra de roseta, não queria de forma alguma afuguentar o prazer de estar contigo de novo, como pode um reencontro ser um dia de Sol num dia de Sol e tantas e tantas memórias me vieram à cabeça, o Solparque, as aulas nocturnas do Charles Lepierre  que eu pacientemente esperava que terminassem, o apanharmos o 24 e eu levar-te a casa, nessa altura ainda havia electricos em Campolide, “o que estás a ler?” “”O Filho de Mil Homens” “já li mas gosto mais do “Remorso de Baltasar Serapião” “esse não li, é o primeiro livro dele que leio e estou a gostar muito” “penso que é muito intimista” “também acho” e continuámos, continuámos, continuámos parecia que estávamos de novo na esplanada do Cunha a namorar sem namorar, agora dois indivíduos na casa dos sessenta naquela altura dois miúdos na casa dos vinte.
“soube que estiveste em Macau” “como?” “não sei apenas sei que sei” “pois estive mas agora estou de novo no sitio onde estava antes só que mudou de nome” “eu sei era a Direcção Geral dos Serviços Florestais e Aquicolas eu estou a trabalhar em Loures” e conversas deste tipo não sei  se numa tentativa vã de esquecer se com medo de lembrar as tantas e tantas coisa que ficaram por dizer, como agora neste silêncio que se estabeleceu entre nós, retomei a conversa “também sei que moras na Portela” “como mas como é que sabes tanto a meu respeito?” “tanto?, tirando isto não sei mais nada” “eu de ti não sei nada” “pelo menos agora sabes que estou velho e careca” riste de novo como só tu sabes sorrir “continuas o mesmo parvo”, sorri, não sei porquê mas sorri talvez quisesse que aquele “parvo” tivesse algo de ternurento porque é verdade que nunca te tinha esquecido e agora ali estávamos a falar como se o tempo não tivesse tido um longo hiato em que de ti nada soube e tu pelo que me parecia nem sequer te tinhas lembrado de mim. E como eu gostava de ti. Não sei se me senti magoado pelo esquecimento ou feliz pelo reencontro, por vezes é difícil definirmos os nossos estados de alma e esse foi um daqueles momentos aqueles momentos que parecem não existir de tanto querermos que fossem diferentes, sim queria que também nunca me tivesses esquecido, queria ainda mais que nunca tivesses desaparecido que o tempo de desencontro tivesse sido um tempo mágico em que tivéssemos escrito a duas mãos um livro que fosse só nosso, o nosso livro, mas agora nada disso importa caminhámos por estradas diferentes, construímos vidas diferentes fizemos decerto tudo diferente e embora as perguntas estivessem presas na garganta nunca tas formulei, tive medo que amuasses, que fosses embora, que me achasses um intrometido e eu só queria estar mais algum tempo contigo, colocaste um marcador no “Filho de Mil Homens” e “vens aqui muitas vezes?” “venho, venho olha sou como a Ana Bacalhau “da Gulbenkian o jardim”” não sei se respondeste fui atraído pelo piar de um pássaro que desviou o meu olhar e atenção de ti mas logo retornei “ãh” “não foi nada deixa estar” e eu deixei, pensei em convidar-te para almoçar para tomar um café um chá, sei lá o que quisesses mas não o fiz, receei o não, “lembras-te quando nos zangávamos e eu ia debaixo da porta do teu prédio deixar pétalas de rosa num envelope com o teu nome” “lembro e gostava, era a tua maneira de pedir desculpa” “tu eras e és tão bonita” “deixa-te disso já não somos as pessoas que éramos” “eu sou” “não digas isso” e eu não disse mas sou, estou mais velho ou velho mas sou exactamente a mesma pessoa tenho os mesmos sonhos e utopias acrescidas de mais algumas e se não for quero acreditar que sou, fumaste mais um cigarro e eu também ficámos por momentos calados apenas olhando-nos, olhando-nos olhos e é tão bonito olhar-te nos olhos, é tão bonito que se pudesse não mais os largaria, o tempo parecia não passar mas passava sentia que aquele Domingo estava a chegar ao fim mas nenhum de nós o parecia querer dar por terminado “vê se se faz tarde para ti” “ não, mas se calhar é melhor irmo-nos embora” “vamos” caminhámos lado a lado até ao teu carro estacionado perto da Igreja de Fátima, démos dois beijos “queres boleia?” “não obrigado ainda vou passar pela Av. Gulbenkian ver se descubro o grafiti do Vilhs que quero sacar umas fotografias” acenaste-me do carro e partiste, não falámos dos nossos presentes, não trocámos números de telefone, nada, limitámo-nos a estar e foi bom, muito bom, só por mero acaso nos voltaremos a encontrar mas tenho a certeza que Li na tua cara que gostaste tanto de me rever como eu a ti, não sei talvez continuemos namorados como nunca fomos mas para quê estragar o que esteve tão bem?