Nesta tasca com as mesas cobertas de copos de bagaço, cartas, tremoços e mines com homens à volta, estou eu.
Sinto-me cercado da solidão de estar só, um estranho entre estranhos, e é nesta altura que quero ser bola saltar para além daquelas paredes infestadas por cagadelas de mosca, cartazes do Benfica e do Eusébio, calendários com mulheres s como os que vemos nas oficinas de mecânicos de automóveis, para ver como è a noite lá fora. Na mesas os homens estão ocupados com cartas, tremoços, bagaços e mines, alguns porventura estarão desocupados de vida, mas estão. Eu, eu sou apenas o observador que observa, um estranho entre estranhos, ninguém me repara, nem em mim nem nos homens das outras mesas apesar de por vezes trocarem monossílabos e se rirem, cada mesa é uma ilha e todas juntas formam um arquipélago chamado tasca. É nesta tasca que vou permanecer até que talvez uma rabanada de vento mais forte entre por aquelas portas e me leve, ou uma fada carregue comigo em suas asas de fada, mas não, nem rabanada de vento nem asas de fada apenas eu e o meu eterno dilema de querer ou não querer, de permanecer ou partir mas desta vez resolvo o dilema e fico. Dirijo-me ao balcão e balbucio “um bagaço”, a mulher de lenço negro por trás do balcão dobra-se e tira uma garrafa, puxa de um copo sujo de sarro e muitas bocas e enche-o até entornar daquele bagaço que emborco de um trago e me pega fogo à garganta, “outro”, a senhora do lenço preto repete o ritual no mesmo copo, olho para as mesas e homens batem forte com as cartas e dizem “toma”, “bagaço, bagaço, bagaço” ritual ritual ritual, a sala parece querer dançar comigo, “o senhor não é daqui pois não?” “não, sou de Lisboa mas de onde queria ser era de lado nenhum e de todos ao mesmo tempo”, a senhora ficou com uma cara apalermada a olhar para mim como quem diz “que homem tão estranho” mas respondeu “vê-se, não tem as mão calejadas” “ham?”, volto a olhar os homens as cartas os tremoços e as mines, uma fina neblina entrepõe-se agora entre mim e eles, esfrego os olhos mas não resulta e faço olhos de cobra mas a neblina continua, as pernas parecem já não querer suportar o peso do corpo e apoio-me com força no balcão, “o senhor está bem?” “essstttouuu” “se precisar de alguma coisa diga” e eu não digo, não digo da cidade que ficou para trás, do filho que ficou para trás, do gato que ficou para trás, da namorada que ficou para trás, dos amigos e colegas que ficaram para trás, a vida que deixei para trás e não quero mais viver. “bagaço bagaço bagaço”, ritual ritual ritual, as pernas parecem querer desistir mas sou mais teimoso e finco-me com mais força ao balcão, “quanto é?” deixo o dinheiro no balcão, “guuaardeee o trooocooo faz faaavooor”. Tento afastar-me do balcão mas agora é ele que parece não querer-me largar, jorro-me para o chão, nado entre beatas, cascas de tremoços, cápsulas de mines, restos de cigarros e outros lixos muitos lixos, os olhos dos homens parecem ter ficado parados naquele ser rastejante que era eu, no meu lento rastejar consegui alcançar a porta, transpu-la, a noite era já toda, o frio e a suave geada que caía não me puseram de pé, continuei rastejando até ao carro, os homens tinham todos mais a senhora assomado à porta, perto do carro consegui meter a mão no bolso retirar o comando e carregar no botão, o carro respondeu-me com um piscar de faróis, a custo abri a porta e icei-me para um banco, recostei-me, tentei atingir o botão do rádio mas ele fugia, recostei-me no banco e fiquei, devo ter tombado sobre o outro e adormecido durante não sei quanto tempo.
De repente dois ou três toques na janela acordaram-me sobressaltado, era a senhora da tasca, cuspi nas mãos e esfreguei os olhos “então dormiu aqui?” “dormi” “sente-se bem?” “sinto, sinto, desculpe posso utizar a sua casa de banho só para lavar a cara?” “pode, esteja à vontade”, sigo a senhora e era como se fosse a primeira vez que a via, não era só o lenço que era preto, toda a roupa era preta, a cara enrugada como uma camisa por passar a ferro, o lenço deixava ver umas madeixas de cabelos brancos como a neve e a boca não tinha dentes, arrastava os pés como se lhe fosse penoso caminhar apesar de o corpo curvado se apoiar num pedaço de madeira.
Chegámos à porta tasca, a senhora pôs a mão no avental e puxou umas pesadas chaves de ferro com que abriu a porta, entro na tasca, “onde é a casa de banho” “é ali por trás daquelas pipas”, vou, entro, o ar tresandava a mijo e eu olho-me no espelho, tenho os olhos vermelhos e a pele amarelada, barba de três dias, abro a torneira que deita uma água acastanhada que passo pela cara e pelos cabelos, saio, dirigo-me à senhora que já tinha aberto as janelas, o chão continuava sujo como na(s) noite(s) anterior(es).
“Tem alguma coisa que se coma?” “tenho broa, chouriço torresmos e pere aí que vou ver se o requeijão já chegou” “se houver requeijão quero requeijão” “tá com sorte o António já cá mos deixou” “é mesmo isso” a senhora cortou grosseiramente umas fatias de broa que colocou num prato, o requeijão noutro prato e talheres nada “que se lixe vai mesmo à mão” pensei, “dê-me um copo de tinto” e a senhora foi ao barril encheu o copo e pô-lo ao lado dos pratos. Meti a mão no bolso puxei da caixa do Gurosan, retirei um que dilui no copo de vinho e tiro também um Tylenol para as dores de cabeça que me rebenta.
Como, pago, “até um dia destes” “até um dia destes e tenha cuidado”, dirijo-me para o carro, agora de pé, puxo do comando e ele responde-me de novo com o piscar de faróis, abro a porta e só então reparo no imenso vomitado, abro o porta luvas tiro uns Kleenex com que limpo o meu banco, recosto-me no acento, enrolo um Amber Leaf e olho à volta, meia dúzia de casas e um chão de terra “como cheguei aqui?” interrogo-me, três ou quatro mulheres velhas passaram pelo largo de lenço e chinelo de trança, homens nenhum, já deviam ter ido para o campo, apenas alguns cães farejavam o carro e ladravam.
O Sol começou a aquecer e a ferir-me os olhos, pus os óculos escuros, ligo a ignição recosto-me e dou umas aceleradelas, “vrum vrum”, ligo o rádio e fico mais um tempinho, o tempo pode esperar, reparo no G.P.S. mas nem lhe toco desta vez à razão costumeira, detesto aquela voz monocórdica “vire na próxima à esquerda, siga cem metros em frente blá blá blá”, juntei mais uma, é que tinha que marcar um rumo e isso eu não sabia, de tudo apenas sabia uma coisa é que voltar para trás não voltava, soltei o travão de mão, carreguei na embraiagem meti a primeira e arranquei, para onde? Não sei mas talvez um dia nos encontremos por aí.