Terreiro do Paço

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Viva o sr. primeiro ministro

Ontem depois de ouvir a entrevista do nosso primeiro ministro à RTP 1 decidi mudar o meu posicionamento perante ele e as suas medidas, e como poderia ser de outra forma? Fiquei a saber que não temos alternativa, que os cortes nos salários, a descida da TSU, os cortes na saúde, educação e subsídios sociais bem como a miséria para que estamos a ser empurrados são tudo medidas “a bem da nação”, é tudo para o nosso bem, nunca mais lhe chamo tretas coelho a partir deste preciso momento quando a ele me referir será sempre por sua excelência o mui excelso primeiro ministro de Portugal dr. pedro passos coelho, um homem que sempre teve uma vida de trabalho primeiro na juventude partidária do partido a que preside, depois foi estudar à noite e comprou, perdão, tirou um curso superior não para que o tratem por dr mas sim para ter suficientes conhecimentos académicos que lhe permitiram singrar na vida começando logo, o que atesta os seus conhecimentos e experiencia do mundo do trabalho, como administrador nas empresas do também mui excelso angelo correia.
Sim o nosso primeiro ministro é um homem empenhado em conduzir-nos aos “amanhãs que cantam”, quando vende ao preço da uva mijona as empresas ancora do nosso país não é para favorecer amigos nem dar de mão beijada o nosso país ao grande capital, coisa que decerto o repugnaria, mas sim para que todos nós e todas as gerações vindouras tenham um futuro sorridente, mesmo que sem dentes visto os necessários cortes na assistência dentária, para que Portugal subsista e possa continuar subservientemente de mão estendida e espinha curvada perante a europa e o mundo num assumir de culpas pelo nosso passado de colonizadores e piratas, sim com este mui excelso primeiro ministro deixámos de ser proscritos e passámos a ser bons alunos apesar de grande parte de nós não se ter esforçado o suficiente para comprar, perdão, tirar um curso superior que lhe permitisse começar no mundo do trabalho logo como administrador de empresas mesmo que seja em empresas de amigos inventores que inventaram por exemplo a “revolução dos pregos”.
Com este mui excelso primeiro ministro e o seu frugal exemplo de homem de Massamá, em sua honra penso que se deveria passar a chamar Mássaboa, já nem me queixo de ter abdicado do almoço e passado a comer uma sopinha no bar do local onde trabalho, não me queixo de não poder fazer alguns exames de saúde que teria que pagar na integra por que para bem de todos nós a saúde passou a ser um bem só para alguns, os que a podem pagar, não me queixo de em vez de tomar três trentais por dia como o parvo do médico queria tomar só dois, não me queixo do aumento dos transportes nem da subida do iva nem das constantes subidas de impostos nem de nada porque sei que todas estas restrições são “a bem da nação”.
Com este mui excelso primeiro ministro Portugal tem finalmente um rumo, mesmo que o rumo seja o abismo, e para que alguns portugueses não se percam pelo caminho lá tivemos o corte nos passes da terceira idade para que esta camada da população eventualmente não apanhe um transporte errado que os afaste do rumo tão arduamente traçado e os cortes nos passes da malta estudantil bem como na assistência social escolar com a consequente baixa de bolsas de estudo? Mais uma ótima medida, quem não tem dinheiro não tem vícios onde é que já se viu malta das barracas a querer tirar um curso superior? Como se já não bastasse que ainda sejam gajos que veem para a rua berrar contra o aumento do custo das propinas perturbando assim a boa paz social e ofendendo a mãezinha do sr primeiro ministro e do sr ministro da educação, senhoras que se mais nada tivessem feito só o facto de terem dado ao mundo tão eminentes vultos como vossas excelências as deveria senão por num altar pelo menos livrá-las de bocas ordinárias e terem mesmo uma pensão vitalícia que lhes permitisse andarem tranquilamente pelo mundo a gozar o facto de vos terem parido.
Estamos juntos sr primeiro ministro, jamais lhe voltarei a chamar tretas nem filho da puta nem vigaro nem ladrão nem nada, vou mesmo lá em casa junto ao altar onde tenho a srª de fátima e um santo antónio criar um espacinho onde possa colocar a sua fotografia para que à noite quando acendo as velas a sua insigne figura possa também ser iluminada e recebedora das minhas mais veementes preces para que Deus nosso senhor o proteja bem como a toda a sua família e seja o nosso guia por muitos e bons anos como aqueles que agora vivemos, passei a ser um seu admirador admiro-o tanto como ao marcelo ao thomaz e ao salazar esses homens providenciais que tão bem nos conduziram durante quarenta e oito anos em que apesar de “orgulhosamente sós” éramos um exemplo para o mundo com as nossas colónias, os nossos bairros de lata, a fome, a miséria, as guerras contra os pretos, a pide, as prisões politicas, os delitos de opinião, os tribunais plenários e tantas tantas coisa boas com que a data fatídica do 25 de Abril acabou, sei que como eu o sr primeiro ministro também abjura esta data que tanto escurece a nossa história e só não percebo, mas o sr lá deve ter as suas razões que a minha ignorância não permite compreender, porque é que nos feriados com que acabou não introduziu também o 25 de Abril e o 1º de Maio, foi para dar mais dois dias aos calaceiros que vivem neste país?
E agora sr primeiro ministro acabo pedindo-lhes as minhas mais humildes desculpas é que amanhã sábado vou à manifestação contra o fmi  no dia 29 vou à da Intersidical  no dia 5 de Outubro vou fazer parte daquela cambada que quer invadir o parlamento e se mais houver mais terei de ir mas sabe a culpa não é minha é que já desde antes do 25 de Abril que convivo com uma data de arruaceiros, é assim que lhes chama não é?, de esquerda e parece mal não comparecer porque depois se calhar passavam também a chamar-me a mim aquilo que lhe chamam a si, filho da puta, ladrão, vigaro, aldrabão, vendido, mentecapto, traidor da pátria e outras ordinarices que o sr não merece mas fique descansado sr primeiro ministro que se lhes chamar estes nomes, instigado pelos outros claro, à noite quando acender as velinhas ao santo antónio e à srª de fátima vou também rezar para que se vossa excelência adoecer seja muito bem tratado por este sns que o sr e o seu colega paulo macedo tanto fazem por preservar.
P.S.(d) – Outra coisa que ainda não compreendi é porque ainda não recriou a pide, a censura e a policia de choque? Se ainda não pensou pense que acho que lhe devem vir a fazer falta.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O Velho do Cartaz

Levantou-se, fez uma festa ao gato que todos os dias esperava que acordasse para lhe dar água e comida, o que fez de seguida, foi à janela apanhar o toalhão de banho que secava do dia anterior, tomou banho, fez a barba, perfumou-se, vestiu-se como se fosse trabalhar, escreveu uma carta que fechou num envelope e endereçou ao filho, fez mais umas festas na cabeça do gato, pediu-lhe desculpa, pegou no jerrycan e num cartaz que de véspera tinha deixado junto à porta e saíu para a rua, de há muito que a ideia lhe maturava na cabeça mas até aquele dia nunca tinha tido coragem de o fazer só que o constante agravar da situação sua e do país bem como a inércia de todos os portugueses trouxeram-lhe um crescendo de coragem ou covardia, depende do posicionamento moral das pessoas, e decidiu fazer, fazer o que tanto tinha pensado, decidiu tomar nas suas mãos o despertar das pessoas, o que ia fazer decerto seria noticia de telejornais e jornais, talvez até internacionais, levando a que os portugueses despertassem da sua letargia ou então talvez continuassem adormecidos e dissessem “mais um maluco”, tudo isto eram pensamentos que lhe assolavam a cabeça enquanto na paragem do 702 enrolava um Amber Leaf na espera do autocarro.
O autocarro chegou, disse bom dia ao condutor, como sempre fazia, passou o passe pelo dispositivo electrónico que diz se este está válido ou não, sentou-se ao lado duma senhora já velha, abriu a Visão, leu a “Boca do Inferno” do Ricardo Araujo Pereira “A culpa morre poliândriaca” uma frase chamou-lhe a atenção “está cientificamente provado que cavaco não tem culpa de nada”, sorriu como sorria ou ria sempre com as crónicas do RAP, apesar do que ia fazer estava calmo, extraordinariamente calmo, parecia que o que antes tinha pensado e agora ia concretizar se tinha tornado numa missão inadiável, porventura era, mas nem ele se apercebia da verdadeira dimensão da coisa, ele que imitava o Jorge Palma e sempre fora um “optimista ceptico” era agora um calmo desesperado, desesperado de justiça, desesperado de igualdade, desesperado das corjas que tinham destruído a “jangada de pedra” que não descolava, desesperado não sei se será bem o termo talvez assente melhor desiludido, entretanto o 702 tinha chegado ao Marquês onde saíu, dirigiu-se à entrada do Metro onde mais uma vez se submeteu ao ritual de passar o passe por outro dispositivo electrónico de leitura e entrou, desceu as escadas da linha amarela em direcção ao Rato, esperou tranquilamente, o metro chegou, entrou, não se sentou, era só uma paragem, e num nada estava no Rato, desceu da carruagem, subiu as escadas num ápice estava no Largo do Rato onde o esplendor da manhã radiosa o apanhou em cheio na cara, atravessou a rua com cuidado por causa do trânsito, dirigiu-se ao café onde antes era “A Ginginha do Rato”, pediu um café e meio copo de água,bebeu, pagou, saíu.
Já na rua pensou se seria melhor descer a rua de S. Bento a pé ou esperar por um autocarro, tinha um estrangulamento da artéria femural que lhe doía horrivelmente quando andava mas se a manhã estava tão bonita porque não desfrutá-la? Decidiu ir a pé, passou pela “Fernandes”, chegou à Rua de S. Bento e começou a descer, o peso do cartaz e do jerrycan associados ao estrangulamento da artéria forçaram-no a inúmeras paragens, ele parava e seguia até à próxima paragem e assim parando e andando chegou à Rua Nova da Piedade, tinha tempo, muito tempo, subiu-a até à Praça das Flores, sentou o corpo velho num banco, fumou mais um cigarro, aspirou um pouco mais de Sol, viu as pessoas que na esplanada da esquina tomavam café e liam jornais, eram jovens como ele já fora, mas tão diferentes de indiferentes que eram ao mundo em que viviam, um arrepio percorreu-lhe a espinha e lembrou de novo a “missão”, levantou-se pegou no cartaz e no jerrycan, desceu a rua que tinha subido e ei-lo de novo na rua de S. Bento que voltou a descer, tinha agora a cabeça cheia de duas musicas “Os Vampiros” do Zeca e o “FMI” do Zé Mário, soavam-lhe a hinos que o acompanharam até à escadaria do palácio onde funciona a a.r., subiu as escadas, sentou-se a meio e fumou mais um cigarro, estava extremamente tranquilo, ninguém passou por ele, ninguém se lhe dirigiu, era apenas um velho, à priopri não tinha obstáculos para fazer o que decidira fazer, suava em bica mas não era medo era o calor de Setembro que o abraçava, calmamente destapou o jerrycan, regou-se com ele, pegou no cartaz com a mão esquerda, com a direita tirou do bolso das calças o isqueiro Bic com que acendia os cigarros, acendeu-o e chamas inundaram o seu corpo de velho, pensou no filho e no gato, mentalmente pediu-lhes desculpa, ouviu a guarda pretoriana que guarda s. bento correr aos gritos na sua direcção, percebeu que gritavam mas não percebeu o que diziam, alguém o regou com um extintor, as chamas apagaram mas era tarde apesar de vivo ainda, no chão tombado a seu lado o cartaz, dizia “PORTUGUESES REVOLTEM-SE”, alguém pegou no cartaz e o levou, chegou o 112 que o levou para a unidade de queimados de S. José, a respiração era rápida e ofegante, chegou rápido ao hospital onde o enxeram de unguentos e gaze, nunca soube se a noticia passara nos telejornais, tinha o corpo coberto em ¾ com queimaduras de 1º grau, esteve três dias em agonia até que deixou de agonizar e viver, nunca quis ser mártir apenas rastilho, também nunca soube se o tinha conseguido como não soube se quem levou o cartaz algum dia o ergueu, mas partiu sabendo que ele tinha feito a sua parte resta agora que outros façam a sua e que todos juntos sejam a resposta ao apelo do cartaz.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O Fim


O cheiro da estearina penetra-me as narinas, a presença de todas aquelas pessoas de ar pesaroso que me rodeiam, preocupa-me, ouço as vozes lamentando alguém que partiu tão novo, que deixou um filho um gato livros filmes e discos, dizem que era boa pessoa, que nunca mostrava má cara a ninguém, um pouco louco é certo mas sempre com um sorriso nos lábios e incapaz de dizer não.

As pessoas revezam-se, enquanto umas saem outras entram e o estranho é que todas se debruçam sobre mim, pareço ser o centro das atenções o que me incomoda sobremaneira, “que é que estes gajos fazem olhando-me com olhos baços? Parece que nunca me viram”, permaneço inerte observando, apenas observando, vejo-os assinarem um livro que está numa mesa pequena redonda e as pessoas sentadas em cadeiras naquela pequena sala rectangular, eles estão engravatados e de fatos escuros elas também com roupas onde também não impera cor, conheço a maior parte deles uns são meus amigos outros conhecidos e outra malta lá do trabalho, “mas que raio é que esta malta faz toda aqui?” e “eu? eu o que faço aqui?”, mas não pergunto nada a ninguém, nem sequer sei como ali fui parar, não me lembro de nada das ultimas 48 horas, “estarei de ressaca?”, tento aprimorar a audição tentando perceber o que se passa mas nada, as vozes manteem o mesmo tom silencioso mesmo quando alguém convida alguém para ir fumar lá fora, sei que estou no centro e todos manteem uma distância reverente de mim, “que estranho ninguém me dirige a palavra”, entram dois amigos meus que se aproximam e também nada me dizem, parecem olhar-me de cima, fazem “tsss” e franzem o sobrolho entre eles, “será que chateei alguém para ninguém falar comigo?” mas se não me falam alguma razão devem ter, tento ver as horas mas desde que perdi o braço esquerdo deixei de usar relógio, habituei-me a perceber o tempo pela posição do Sol, mas ali naquele rectângulo fechado não há Sol apenas uma lâmpada fluorescente no tecto, não consigo perceber se é noite se é dia mas também foi uma coisa que nunca percebi bem, vivia independepentemente das horas ou fusos horários a falar verdade o que me orientava era o estômago e as suas necessidades mas também convem que se diga que nunca fui gajo de comer muito, beber sim, mas comer nem por isso, ouço falar em cirrose e penso “porra do que estes tipos se lembraram” e devo ter transposto este pensamento para as minhas recordações dos últimos tempos e para aquela dor abdominal que me andava a atormentar mas não deve ser nada que agora não sinto dores e verdade seja dita sinto-me perfeitamente tranquilo, não sinto a menor das preocupações apenas estranheza de ninguém falar comigo e sussurarem entre si como se quisessem que não ouvisse, e se calhar não queriam mas estou-me borrifando que nunca fui gajo de me meter na vida de ninguém.

As pessoas lentamente começam a abandonar a salinha e entre si dizem “até amanhã” mas ninguém se despede de mim, quando o ultimo sai vem um senhor que apaga a luz e fecha a porta, “que merda fico agora aqui sozinho e sem luz”, o silêncio faz com que me aperceba do mais ínfimo ruído, os carros que passam na rua longe, o senhor que passeia o cão e diz “despacha-te que o dono tem que se ir deitar”, o leve restolhar das folhas levadas pelo vento, os gatos a miar, uma rapsódia de sons que se ouvem apenas quando o silêncio á absoluto, adormeço de barriga para cima e não sobre o lado direito como costume, ainda tento rodar sobre mim para essa posição mas é impossível ou o corpo não me obedece ou parece que estou dentro de uma caixa, Que se lixe durmo mesmo assim”.

Sou acordado pelo barulhos de umas chaves na fechadura e pelo acender da tal lâmpada fluorescente, estou agora sozinho e penso onde raio estarei eu mas este pensamento é curto porque entretanto chegam pessoas com o mesmo ar pesaroso da véspera, chegam cumprimentam-se e sentam-se continuando sem me dizerem nada de nada, “mas que é que eu fiz a esta gente para ninguém falar comigo?” contudo ouço as suas palavras sussurradas de onde sobressaem o coitado, tão novo, cirrose, vem alguém que diz “podemos fechar o caixão?” como resposta apenas obteve silêncio e uma imensa escuridão abate-se sobre mim, sinto-me levado contra vontade mas não consigo dizer nem fazer nada, ouço o barulho daquela caixa, agora já sei que estou numa caixa, a ser colocada em qualquer lado que não sei qual, apenas o ruído de a empurrarem. Sinto um movimento de qualquer coisa que transporta a caixa, sinto essa coisa parar, sinto o mesmo ruído de quando colocaram aquela caixa naquela coisa mas agora em sentido inverso, levam-me sem qualquer ruído nem lamurias, poisam a caixa em qualquer lado e tiram a tampa, a luz do dia invade-me, as pessoas uma a uma debruçam-se sobre mim umas beijam-me na face outras dizem adeus. A caixa fecha-se de novo e a escuridão volta a imperar, sinto que pegam nela e a movem lentamente num movimento descendente, tento gritar mas o grito fica-me colado na garganta, ouço primeiro lentamente um barulho ritmado de algo que cai sobre a caixa, o ritmo dessa queda aumenta até que pára, a escuridão e o silêncio são agora absolutos, resigno-me, os pensamentos lentamente vão-se desvanecendo, entrego-me, rendo-me tento perceber o porquê daquilo e por fim percebo, cheguei ao fim.

 

A Coleção de Unhas dos Pés


Debaixo da cama tenho uma caixa de sapatos que em tempo teve sapatos, são muito úteis as caixas de sapatos as pessoas aproveitam-nas para guardar fotos, recortes de jornais, bilhetes da lotaria, bichos da seda, cromos e mais uma infinidade de coisas que caibam numa caixa de sapatos, mas eu não, eu guardo unhas dos pés, isso mesmo, unhas dos pés enquanto as outras pessoas colecionam as mais diversas coisas eu coleciono unhas dos pés.

Desde aquele dia em que a minha mãe disse “Fernando já és crescidinho a partir de hoje cortas tu as tuas unhas” e deu-me um corta unhas que coleciono unhas dos pés, só dos pés as das mãos não me interessam ou deito-as fora ou dou-as ao gato para comer, se comemos “linguas de gato” porque é que eles não hão-de comer algo de homem mesmo que sejam unhas das mãos? Penso que assim estou a reequilibrar a natureza, se nós comemos “linguas de gato” o meu come unhas das mãos e por acaso até penso que gosta porque tirando meia duzia de vezes em que se engasgou e tive que abrir-lhe a boca à força para lhe tirar as unhas da garganta, fiquei todo arranhado mas isso são coisas que acontecem,e penso que gosta porquê? nunca se queixou e por vezes às escondidas até dá umas secretas lambidelas nos lábios.

Mas o que aqui está em questão é a minha coleção de unhas dos pés, é uma coleção fácil de fazer não temos que ter a preocupação de as arrumar com cuidado para não se amarrotarem ou estragarem é só agarrarmos nos dedos, eu começo sempre pelo maior do pé direito, cortá-las pô-las e cima da mesa de cabeceira e depois de cortada a última, a pequenina do pé esquerdo, deitamos a mão para debaixo da cama, com cuidado para não pôr a mão dentro do penico, puxamos da caixa agarramos nas unhas todas que estão na mesa de cabeceira e zás tudo de uma vez para dentro da caixa elas não se chateiam minimamente com a posição em que ficam, estão dentro da caixa e pronto mas o cortar das unhas dos pés para ser mais simples requer um truque que vos vou ensinar e é simplicissimo, é só deixar crescer as unhas durante uns bons seis meses para ganharem um tamanhinho razoável e pronto estão boas para serem cortadas, teem aquele tamanho ideal para fazermos a operação sem grandes trabalhos de dobragem de costas  é só pegar no dedo apontar o corta unhas apertar as duas extremidades e pronto já está. Há pessoas que teem a mania de cortar as unhas frequentemente mas isso é uma parvoice então reparem teem primeiro com aquela coisinha pequenina que os corta unhas teem de limpar o merdelim que está por debaixo da unha e depois a pontaria que teem de fazer para não magoar o sabugo, o sabugo não a elas próprias porque o sabugo não é das unhas o sabugo é das pessoas mas outras ainda é pior vão à pedicure, pedicure vejam bem que mariquice, já viram o que era eu entrar na pedicure com um saquinho de plástico na mão e dizer-lhe “ olhe faxavor não deita as unhas fora depois de cortadas ponha-as aqui neste saco que é pra levar pra casa” a mulher até devia pensar que eu era doido e se não fosse o risco de alguém seguir as minhas sábias palavras e provocar mais desemprego até lançaria aqui uma palavra de ordem “pedicure não obrigado”.

Pois é mas a minha caixinha de unhas dos pés está aqui debaixo da cama e por vezes de noite enquanto vejo as novelas da tvi até as vou buscar acaricio-as e cheiro-as, como é bom aquele cheirinho a xulé acumulado, aquela gaja loira do cinema a Marylin ou lá o que é dizia que dormia só com Channel 5, parva, eu durmo com as unhas dos pés além do cheiro ser bem mais agradável também a nivel de preço não tem comparação, as unhas dos pés são de borla.

- O quê sr. Enfermeiro?

-Sr. Fernando está na hora de tomar os seus comprimidos.

Olha desculpem vou ter que ficar por aqui se não o enfermeiro chama outros e leva-me à força se me deixarem voltar à internet contou-vos o resto da história e até talvez vos fale de uma coleção que iniciei agora, pêlos da pubis.

sábado, 1 de setembro de 2012

Dois loucos de Lisboa e a Triunfal Viagem a Olhão


Esta é a história de dois loucos de Lisboa, normalmente eram três mas esta foi só com dois, hoje um deles chama-se Bobby de la Fontaine ou “o Velho” e o outro “Dude” ou Nandinho o homem bomba mas naquela altura não, eram respectivamente o Bitencas e  Monteiro, pois bem nesse dia o Bitencas passou toda a tarde a foder a moleirinha do Monteiro para irem visitar as tias dele a Olhão, o Monteiro mostrava-se renitente “pá não vou tou teso” “não há azar tenho massa que dá prós dois” “não vou” “vem” “não vou” “vem” “não vou” “vem” e o Monteiro lá acabou por ser convencido, pudera não estava sempre a “puxar-lhe o pezinho pró chinelo” e sempre saíam de Lisboa “tá bem vou mas primeiro vamos ao Camões comprar fumo”, e foram eram 6 em ponto da tarde quando deram aos slides daquela empresa na Concelheiro Fernando de Sousa e se meteram num táxi “é pó Camões” “pá devíamos ter bebido qualquer coisa” “pois devíamos tou cheio da sede” “antes de comprar fumo vamos mamar qualquer coisa” “ah pois vamos”, chegaram ao largo do Camões enfiaram-se naquela tasca que faz esquina com a rua da Misericórdia do lado de esquerda de quem sobe e toca de mandar vir imperiais e mandaram vir tantas que quando deram por eles já era de noite “é pá foda-se, o comboio e ainda não comprámos nada” penso que nem sabiam a que horas era o comboio descendente na medida em que ia para o Algarve que como quem sabe para quem vai do Barreiro aquilo é sempre a descer. Sairam da tasca já bem aviados e dirigiram-se a um “dealer” conhecido do Monteiro “tens fumo?” “tenho” “arranja aí três ou quatro pintores” e o gajo arranjou. Devidamente aconchegados de álcool e de produto puseram-se a caminho do Terreiro do Paço, claro que a ervinha começou logo a ser consumida “ganda moca meu” “é da cerveja” “não é nada meu o produto é bom”, ainda devem ter visitado um dois senhores policias que era como chamavam aos caixotes de lixo onde vomitavam “desculpe senhor policia” “desculpe senhor policia” e depois de descerem a rua do Alecrim e palmilhado com mais ou menos curvas a rua do Arsenal lá chegaram ao longincuo Terreiro do Paço, “tou cansado meu vamos descançar um bocadinho” “não vamos nada vamos é tirar os bilhetes” e foram mas o sacana do barco ainda demorava, sentaram-se no café dentro da estação e vai de emborcar mais umas jolas, a merda do café não tinha imperial, beberam vieram à rua enrolar mais uma pica e “srs passageiros o barco para o Barreiro parte dentro de dez minutos” “bora pá” “bora” e lá boraram aos tombos até ao barco, aqui não me recordo mas penso que foram muito sossegadinhos e quietinhos.

Chegada ao Barreiro o ar fresco do Tejo deve ter-lhes feito bem já que saíram do barco sem tombos nem “desculpe senhor policia”, vai de estugar o passo até à estação, direcção à bilheteira “são dois bilhetes pa Tavira” “olhem que o comboio tá a partir e é o último” “tá bem então despache-se ca gente tem quir neste”, o homem passou os bilhetes o Bitencas pagou e lá fomos a correr à gargalhada até ao comboio, “foda-se que a carruagem é escura e já tá cheia”, por entre magalas da tropa , que iam de fim de semana velhos velhas e outros nem tanto lá conseguiram dois lugares juntos “enfim sós” no meio duma data de malta.

Pi Pi Pi Pi, era o comboio a arrancar e a malta a gargalhar, eram o fulcro centro das atenções dos demais combóiantes, seriam combóidepois após descerem mas agora eram combóiantes.

Com o “pouca terra pouca terra” e a distância percorrida os nossos colegas de viagem começaram a soltar-se talvez até alguém tenha puxado de um garrafão de vinho, mas já andavam de lugar em lugar, falavam alto, contavam piadas de gosto duvidoso mas estarem quietos é que está quieto ó mau. O Bitencas e o Monteiro para não destoarem ou porque eram mesmo assim também entraram logo numa de familariedade com aquele pessoal “e sa gente enrolasse uma broca” “tava à ver que nunca mais dizias nada” o  Monteiro sacou das mortalhas o Bitencas passou-lhe a erva e ele enrolou. Acenderam a dita cuja broca e foram fumando e passando de um para o outro, o cheiro da erva aromática invadiu a carruagem e os comboiantes todas de nariz no ar, “qué isto” “é tabaco de cachimbo” “e só teem um?” “não temos mais mas gostamos de fumar a meias” “se quiserem um cigarro a gente dá” disse um magala da tropa” “não deixa tar que quando a gente enrolar outro tu provas a ver se gostas” “tá bem sempre quero ver sé bom”, este ainda fumámos sozinhos e ainda também gargalhámos sózinhos ou pelo menos pareceu-nos.

O comboio continuou na sua marcha em direcção ao Algarve, “vamos pôr esta malta toda a fumar? “vamos” o Monteiro enrolou mais um charro, acendeu-o, deu uma passa e passou ao Bitencas “Oh meu queres uma passa?” para o magala da tropa, “quero sempre quero ver sisso é bom” o gajo aspirou, tossiu “porra arranha a garganta” “isso é porque não tás habituado, dá outra passa e prende nos pulmões” o gajo assim fez e aquilo parece que lhe bateu mesmo “pá vocês já me fuderam isto ´´e droga” “não é nada pá, é erva” “posso dar aos meus colegas para experimentrem?” “podes mas só dá uma passa cada um” “tá bem eu digo” e eis a magalada toda a fumar, as gargalhadas colectivas começavam a ecoar na carruagem começava de facto a ser “o comboio descendente onde vinha tudo à gargalhada uns por verem rir os outros os outros sem ser por nada”, “pá acabou-se e não fumou a malta toda” “foda-se quantos é que vocês são?” “não sei” o bom do Monteiro lá enrolou mais uma pica passou ao Bitencas que passou ao magala que a passou aos restantes colegas “não há mai nada pa ninguém a não ser que gente fume, orientem-se” “tá bem”, as conversas subiam de tom o gargalhar idem, surgiu-nos uma garrafa de vinho na mão e não nos fizemos rogados, gargalo na boca vinho na goela, as paragens sucediam-se e a carruagem ia ficando despida, ainda não tinha aparecido o pica, um senhor de idade perguntou ao Monteiro se ele tinha tabaco, ele disse que sim enrolou outro charro e passou ao homem, o homem deu o primeiro trago “foda-se quisto é forte, é droga?” “não é tabaco de erva” “ah”, deu mais um ou dois tragos e “tomem lá isto que não quero nada disto que já tou ca cabeça à roda” “não há azar passse que a gente fuma o resto”, já estávamos cuma buba e uma moca do caraças, uma personagem sinistra de cinzento e de boné com um alicate na mão aproximava-se “bilhetes” era o revisor, o Bitencas puxou dos bilhetes e passou-lhe “qué isso que tão a fumar? Tem um cheiro esquisito” “são cigarros de erva quer experimentar?” “é muito forte?” “um bocadinho mas aguenta-se bem e como as ervas são medicinais fica-se bem disposto” “deixem lá experimentar essa coisa”, passaram-lhe o charro para a mão ele deu duas passas “cof cof é forte pra caralho” “vai ver se daqui a bocado não está mais bem disposto” “capaz sei lá”, o picas lá foi à vida dele mas já um pouco com o passo desacertado e a festa na carruagem continuou apesar de já ir pouca gente, os magalas o Bitencas o Monteiro e pouco mais, os charros e as garrafas recomeçaram a rodar já ninguém se entendia a desbunda era total, uns cantavam outros só riam e havia grandes conversas filosóficas já que naquela altura todos eram experts em tudo, Tavira e a manhã aproximavam-se “tu tu tu” numa passagem de nível, o picas reentrou na carruagem “porra co tabaco que me deram deixou-me todo zonzo” “foi agora do tabaco você é que deve ter andado nos copos” “não andei pela alma da minha rica mãezinha” “ainda falta muito pra Tavira?” “é a próxima” “ói pessoal a malta vai sair na próxima” “já?” “já” “podiam deixar aí um cigarrinho daqueles prá malta” e eles deixaram.

Bitencas e Monteiro saíram, enfiaram-se na primeira tasca que encontraram e tomaram o pequeno almoço, imperiais e peixe seco, perguntaram onde eram as camionetas para Olhão e o tasqueiro disse-lhes, eram prái 7 da manhã e eles já perdidos de bêbados e com uma moca maior que as de rio maior, amparavam-se um no outro e tombo práqui tombo práli chegaram à estação de camionagem, pediram dois bilhetes para Olhão “onde é a camioneta?” “é já ali” e o funcionário apontou com o dedo, “achas que dá pra beber mais um bejeca” “não sei bora perguntar ao motorista” “falta muito pra partir?” “mais ou menos meia hora” “então dá” foram até um café mesmo em frente “são duas canecas e dois d. rodrigos”  beberam e voltaram prá camioneta “o sr. não se importa de nos avisar quando chegar a Olhão, é que saímos agora do comboio tamos cançados e podemos adormecer” “senrem-se aí no primeiro banco que quando chegarmos aviso”, sentaram, “foda-se tou todo fodido” “também eu” e adormeceram, não sei se levaram muito ou pouco tempo mas de repente foram despertos pela voz do condutor “amigos a próxima é já Olhão”, esfregaram os olhos espreguiçaram-se, a grua aproximou-se para os levantar e conduziu-os até à porta, saíram “e sa gente antes dir ter cas tuas tias fosse ò mercado” “não man vamos primeiro ter cas velhas” o ar marítimo parece ter-lhes feito bem e já com o passo certo dirigiram-se para casa das tias do bitencas “esta terra tem mais igrejas que sei  lá quê vais ver à noite” bateram à porta “quem é?” “é o António tia” “ai o meu Toninho que não o vejo há tanto tempo” “apeteceu-me fazer-lhes uma surpresa e trouxe um amigo” “entrem entrem nós íamos agora tomar o pequeno almoço  vocês comem connosco e depois vão-se deitar um bocadinho que devem estar cansados” “olhem esta é o Monteiro” “muito prazer” e o Monteiro reverentemente beijou-lhes a mão como via nos filmes, as velhotas coitadas derreteram-se todas, tomaram o  pequeno almoço café com leite e torradas, blhac, “então se faz favor acordem-nos aí ao meio dia uma hora ca gente anda quer ir dar uma volta” “vá vão mas é dormir” e eles foram, ferraram logo o galho que nem duas pedras, a aventura desse fim de continuou mas o narrador não se lembra, vou ter que falar com um deles e caso algum recorde o que se passou prometo trazer-vos aqui ao bloco de caras a continuação da saga de dois loucos de Lisboa em terras algarvias.   

Um dia na vida de alguém


Largo do Calvário 6H30 da manhã, começam os primeiros eléctricos, as primeiras pessoas, os primeiros barulhos que me acordam, movo-me lentamente o corpo está dorido, os pés frios as mãos engelhadas, apesar de Julho a noite esteve fria ou então não tive cuidado e não usei os cartões suficientes, as minhas mãos procuram o saco plástico do mini preço onde guardei o que ontem consegui como pecúlio, é um pecúlio pequeno, uma lata de atum duas carcaças e um pacote de vinho o que para começar o dia não é nada mau pelo menos pequeno almoço já tenho.

Soergo-me lentamente com cuidado que os meus setenta e dois anos já não me permitem grandes veleidades a nível físico, por vezes durmo na Gare do Oriente mas isso é sobretudo no Inverno onde o rigor do tempo me obriga a procurar lugares mais abrigados onde me veja protegido do vento e da chuva mas ali é pior, é um sitio mal frequentado com os miúdos de Unhos e Camarate que vêem dos bares da Expo já bêbados e se metem comigo parece que teem prazer em escarnecer dum velho que faz daquele espaço a sua casa, um dia um grupo deles chegou mesmo a dar-me uma valente carga de porrada sem eu perceber porquê, as pessoas passavam e não me auxiliavam eu era uma bola pontapeada e socada por aquele bando de energúmenos que não encontraram nada melhor para fazer que agredir quem já não se pode defender e os filhos da puta ainda se riam, fui salvo por dois policias que por mero acaso passaram por ali e fez com que eles fugissem, os policias até foram simpáticos ajudaram-me a levantar do chão e vendo o meu lastimável estado chamaram o 112 que me levou ao hospital e agora, vendo bem as coisas até acho que foi bom terem-me dado porrada porque passei três dias no hospital sem preocupações de ter que ir inventar comida e dormir numa cama com lençóis e tudo, pior foi quando os médicos acharam que estava bom e me disseram “sr. João hoje vamos dar-lhe alta”, ainda perguntei se podia ficar mais um dois dias mas eles disseram logo que não que precisavam da cama  e para eu ir à Santa Casa procurar ajuda mas farto disso estou eu.

Como ia dizendo levantei-me devagarinho, arrumei bem os cartões que atei com um baraço que trago sempre comigo, fiz duas sandes de atum, dei uns goles no pacote de vinho, fumei um cigarro e pus-me de pé, com algumas dificuldade é certo, que estas dores que tenho aqui nas cruzes andam a dar cabo de mim, quando estava em casa da minha filha ali na Quinta do Cabrinha nada disto me apoquentava mas desde que foi presa por ter morto o marido com 605 forte depois de ter descoberto que ele andava amancebado com a vizinha do 1º andar que a minha vida se virou toda do avesso, a assistente social da câmara não me deixou ficar com a casa porque eu não estava registado ou qualquer coisa assim e pôs-me na rua, por causa da falta de um registo qualquer põem um ser humano na rua, é como se fosse lixo.

Tive que me resignar e fazer à vida que nem reforma tenho, vivo do que me dão e do que encontro nos caixotes de lixo dos supermercados, por vezes alguém mais bondoso  oferece-me uma sopa ou uma sandes mas isto não é vida para ninguém e muito menos para um velho com 72 anos como já vos disse que tinha, vou fazer 73 se nosso senhor me der vida e saúde no dia 23 de Setembro, dantes a minha filha comprava-me sempre um bolo e bebíamos um calicezinho de vinho do Porto enquanto ela e o marido cantavam os “parabéns a você” mas agora os dias são todos iguais, nem anos nem Natal nem nada apenas dias que passam cada vez mais devagar, mas pronto a vida assim quis e é assim que vivo.

Já de pé dirijo-me para a rua Alexandre Botelho onde lá mesmo quase em cima fica o Balneário de Alcântara onde vou tomar banho e fazer a barba, tenho a impressão que nestes últimos tempos há muito mais gente a usá-lo porque dantes chegava e entrava logo, agora não, há dias em que até há bichas de pessoas à espera e não são só pessoas como eu que vivem na rua há pessoas que até estão bem vestidas e levam um saquinho com o sabonete e o shampoo, dizem-me que é da crise mas em crise vivo eu há uma data de anos mas pronto está bem se as pessoas lá vão é porque precisam e eu não tenho nada a ver com isso, chego ao Balneário mas ainda está fechado só abre às sete e meia, cá fora sentados nos vãos de escada estão já algumas pessoas à espera, são gente como eu que passa a vida à espera, o sr. Freitas já lá deve estar dentro que as luzes estão acesas e olha nem por acaso as portas abrem mesmo agora, entro com os demais e “bom dia sr. Freitas” “bom dia sr. João precisa de alguma coisa?” “por acaso hoje até me dava jeito mudar de roupa” o sr Freitas vai lá dentro e dá-me um saquinho de plástico com umas cuecas um par de meias umas calças uma camisola e um bocadinho de sabonete “veja lá se isso lhe serve” “serve serve sr. Freitas, até já” “oh sr Freitas senhor Freitas não se arranja aí uma giletezinha””tome lá mas depois guarde-a que já temos poucas” vou para o chuveiro e dispo-me, olho o meu corpo e vejo os ossos à flor da pele, que diferença faz do corpo que tinha quando era jovem e trabalhava na estiva, tinha um corpo musculado capaz de fazer inveja a qualquer Tarzan Taborda mas depois vieram as máquinas que nos substituiram e a pouco e pouco fomos sendo todos despedidos mas não adianta recordar o passado o que me interessa agora é sobreviver diariamente, tiro as roupas lavadas do saco que disponho num banquinho e dispo as que trazia que coloco no mesmo saco para depois as deixar com o senhor Freitas, a água quente do chuveiro sabe-me bem, ensaboo-me uma duas vezes tiro a espuma do corpo seco-me visto a roupa lavada e com o mesmo sabonete com que me lavei dirijo-me aos lavatórios onde passo o sabonete pela cara e faço a barba, limpo e revigorado dirijo-me para a saída onde deixo as roupas sujas com o senhor Freitas, “até amanhã senhor Freitas” “até amanhã senhor João”

Desço a Alexandre Botelho e vou até ao largo do Calvário onde espero um eléctrico para o Terreiro do Paço, o eléctrico chega eu entro mas sempre com atenção à próxima paragem não vão aparecer os fiscais, tive sorte cheguei ao Terreiro do Paço sem aparecer nenhum e aí chegado desço, desço e subo a rua Augusta até à igreja de S. Domingos onde me sento à porta com uma lata na frente onde tenho esperança que alguém vá deixando cair alguns cêntimos, entra e sai muita gente sobretudo turistas que com as máquinas fotográficas me tiram retratos e alguns até deixam algumas moedinhas, não tantas como antigamente porque agora há muita concorrência sobretudo de romenas que com crianças ao colo vão lamuriando qualquer coisa que ninguém entende, eu mantenho-me calado apenas digo “obrigado” quando cai alguma moedinha na lata.

É meio dia, recolho as moedas da lata e constato que não foi mau, 3€25, está na hora de mudar de poiso e ir até à 1º Dezembro para a porta do Pingo Doce, é uma boa hora é a de maior afluência com as pessoas a irem comprar qualquer coisa para almoçar e por vezes alguém me deixa algo que se trinque, o lugar que costumo ocupar está hoje ocupado por dois hippies com um cão, sento-me um pouco mais afastado mas suficientemente próximo para as pessoas me verem, fico ali até por volta das três, hoje deve ser o meu dia de sorte consegui dois yogurtes, um pacote de bolachas um pacote de leite e uma sandes de delicias do mar, como logo ali a sandes e os dois yogurts, as bolachas e o pacote de leite guardo ou para o meio da tarde se me der a fome ou para o jantar, já não vou para a igreja de S. Domingos, de tarde é melhor no Chiado há muitas igrejas e pode ser que tenha a sorte de encontrar alguma sem ninguém a pedir à porta, subo a rua do Carmo rua Garret e abanco logo na primeira igreja, não tem ninguém à porta e é ponto de passagem obrigatório, sento-me ponho a lata à frente e espero, de vez em quando lá ouço o barulho de uma moedinha a cair na lata “obrigado”, fico ali até por volta das oito quando o movimento se torna menor é hora de voltar para “casa”, tiro as moedas da lata e conto-as, junto com as da manhã fiz quase 10€, se todos os dias fossem assim era bom. Levanto-me subo ao Camões, desço a rua do Alecrim até ao Cais, espero que passe um eléctrico ou autocarro para o Calvário, chega um e eu entro sempre com a mesma atenção na coca dos fiscais, chego ao Calvário e são quase nove horas mas ainda é de dia, vou a uma taberna e peço uma bifana e um copo de vinho, depois remato com um bagaço, 2€ certinhos, ainda fico com quase 8€ um pacote de bolachas e um pacote de leite mesmo que o dia amanhã não corra bem não me preocupa tenho o suficiente para comer, vou até uma loja de electrodomésticos que tem uma televisão ligada e fico ali a ver até ser escuro, começa a escurecer e encaminho-me para o mesmo banco de ontem, indiferente aos poucos olhares que passam tapo-me com os cartões, ajeito-me bem no banco na espera que o sono venha depressa e ele vem, até amanhã.

 

Adeus


 

 

Tenho saudades de quando os meus olhos encontravam os teus e juntos formavam um lago que tanto podia ser o do Campo Grande, Jardim da Estrela ou mesmo numa versão mais modesta o do Jardim da Parada com a sua Maria da Fonte, tenho saudades de quando nada dizíamos e os olhos eram as palavras que trocávamos e mesmo de boca fechada tínhamos imensas conversas, tu com ss tuas dúvidas e eu com as minhas certezas feitas de nada, tenho saudades de que quando as nossas mãos se encontravam e partiam à descoberta de lugares idílicos que poderiam ser em qualquer lado, um café, um cinema, um lugar cheio de gente onde apenas eu e tu nos encontrávamos, tenho saudades dos teus lábios quando procuravam os meus ou mesmo quando os meus encontravam os teus.

Tenho saudades das nossas altercações que terminavam num longo e comprido abraço feito de línguas ciosas uma da outra, tenho saudade de o teu pequeno coração de andorinha palpitar em uníssono com o meu, tenho saudade de ti dos teus cabelos despenteados pelo vento e penteados pelos meus dedos, tenho saudades dos sonhos falados juntos, da viagem à Noruega desses sonhos em que colávamos as mão dadas nos fiordes e dizíamos ai com a temperatura da água, tenho saudades do Tibete que sonhámos com o “Sem Olhos em Gaza”, tenho saudades do toque de telemóvel personalizado que me dizia seres tu. Tenho saudades e tudo o que me resta saudade e a memória triste daquele telefonema descaracterizado onde uma voz descaracterizada do outro lado me disse que tinhas tido um acidente e estavas em Santa Maria ainda perguntei se era grave mas só me disseram para lá ir.

Cheguei, perguntei por ti e nas urgências disseram-me que tinhas sido colhida por um eléctrico no Cais do Sodré, devias ter ido comprar flores coisa que tanto gostavas, e estavas nesse preciso momento a ser operada, “mas é grave?” perguntei com o desespero a toldar-me a voz “lamento mas não lhe posso dizer nada suba ao bloco e tente colher informações” corri em direcção ao elevador e subi praguejando contra a lentidão do elevador, tinha pressa de estar contigo, de falar contigo, de apertar a tua mão pequena na minha, o elevador chegou ao piso, corri até ao bloco e perguntei por ti à primeira pessoa que encontrei, não se podia entrar no bloco, passada uma eternidade de poucos momentos a pessoa a quem tinha perguntado por ti voltou “o sr. dr, já vem falar consigo” esperei, angustiei, mesmo sendo proibido fumei um dois sei lá quantos cigarros.

Passado demasiado tempo apareceu um médico de bata verde e com uma toca na cabeça. “é o sr. Fernando Monteiro?” “sou” “a operação correu bem mas a srª sofreu um traumatismo craniano com derrame da massa encefálica” “mas vai ficar bem? diga-me que vai ficar bem” “não lhe posso dizer isso a srª está em coma e as próximas vinte e quatro horas são cruciais, porque não vai até casa e volta amanhã?” “não, não e não, posso pelo menos vê-la vê-la?” “venha comigo mas é mesmo só vê-la” seguiu, estavas deitada numa cama com tubos a saírem-te por tubo o que era orifício, as máquinas monitoravam-te as funções vitais numa harmoniosa sequência de curvas e picos, o teu rosto sorridente estava inchada mas eras tu apesar da deformidade, os cabelos louros compridos tinham sido cortados e no lugar deles uma imensa ligadura branca, dei-te um beijo na testa e disse até já, sem esperança que houvesse até já, dormi nos bancos de madeira esperando que me viesses despertar como sempre fazias com um beijo e uma carícia mas tal não aconteceu. Depois de muitos anos acordei sem ti a meu lado, levantei-me de um salto e toquei na campainha da porta que me separava de ti, abriram a porta, era uma enfermeira “como é que ela está?” “só um momento que o sr dr já vem falar consigo”, passado pouco tempo o mesmo médico do dia anterior apareceu com um ar conpungido “como é que ela está dr.?” “venha até ao meu gabinete” fui atrás dele abriu uma porta deu-me a primazia “entre e sente-se faz favor”, sentei-me, “infelizmente os danos cerebrais eram demasiado graves e a srª não chegou a acordar, faleceu durante o sono” “não não não”, as lágrimas corriam-me compulsivamente pela cara, limpei a cara com a manga do sobretudo, “sofreu? Posso vê-la dr.?” “agora ainda não mas depois levo-o lá, quer que lhe mande vir um café ou um chã?” “não obrigado dr enquanto não a posso ver vou apanhar um bocado de ar e volto já” “mais ou menos uma hora enquanto a arranjam”, saí contive as lágrimas e vi o teu sorriso os teu olhos os teus cabelos, vi a tua recordação, pareceu-me mesmo que me agarravas a mão sem vontade a largar, mas não eras tu era a tua memória aqui presente.

Vim até à saída do hospital, nas senhoras que na porta vendem flores comprei-te uma rosa vermelha e telefonei aos nossos amigos que também não queriam acreditar, o céu cinzento pairava em todas as nossas memórias na certeza que não mais ouviríamos o teu sorriso, fumei mais um cigarro e dirigi-me onde estavas, toquei na porta e veio o médico “venha” levou-me até ti, mesmo sem vida eras linda, já não tinhas tubos nem aparelhos a monitorarem-te, apenas as ligaduras permaneciam na tua cabeça, beijei-te as mãos os lábios a testa, deixei-te a rosa vermelha nas mãos frias, voltei-te as costas e vim-me embora, tinha o coração do tamanho de uma noz, não chorei, fui para a nossa casa vazia, eras tu que a preenchias, comecei a receber telefonemas até que desliguei o telefone, tinha que preparar a tua definitiva partida, escolhi a roupa, fui à funerária e escolhi um caixão, queriam vender-me flores mas não aceitei, só eu sabia as que gostavas, fui à florista que depois as entregaria, não fiz velório era-me doloroso ver-te ali inerte, ouvi a musica que gostávamos qualquer coisa da Nina Simone, não dormi, de manhã fiz a barba vesti-me e fui para a morgue do hospital, os nossos amigos já lá estavam, as rosas orquídeas e tulipas também, trouxeram-te, puseram-te no carro funerário, partimos rumo ao cemitério, a urna abriu pela ultima vez “para quem se quisesse despedir” eu só queria estar a sós contigo para te dizer tantas palavras que te não tinha dito, fui o último a despedir-me de ti, deixei-te um ultimo beijo nos lábios. Fecharam a urna, era inútil dizer-te até já, a primeira pazada de terra em ti, aquele som é um pesadelo que ainda hoje me persegue, aquele som é perfeitamente horrível como um trovão que apenas a nós nos atinge, digo-te adeus, os nossos amigos foram partindo eu fui ficando até haver só terra, pela última vez adeus, passo a passo chego à saída, apanho um táxi digo a morada, chego à porta do prédio, toco na campainha esperando que respondas sabendo de antemão que como resposta apenas terei silêncio, meto a chave na entrada sou apanhado pelo homem da barbearia “os meus sentimentos” “obrigado”, subo quatro lanços de escada, abro a porta e entro, o silêncio impera, ponho o Cohen e mando vir uma piza, tomo uma tua fotografia em mãos que afago, sento-me e espero pela piza que há-de chegar. Penso em ti e na solidão em que me deixaste, o Cohen toca e a piza chega, como-a e bebo uma cerveja. Acabo, separo o lixo como gostavas, visto uma parka, saio para a rua e apetece-me ir para perto de ti mas sei ser em vão, nada te trará, subo a rua e no cimo tenho que escolher uma de três ruas, nem penso meto por uma delas, que importa? Não tenho a tua mão minha.

A Corrida


Páro o carro, desligo a ignição, travo-o, saio, cá fora é um largo imenso por onde correm folhas arrastadas pelo vento que sopra forte, são talvez oito da manhã ou por aí, não sei o tempo que é nem tão pouco me importa, tenho o cabelo desgrenhado, barba por fazer, camisa fora das calças e do bolso traseiro roto das jeans caem moedas que não me preocupo em apanhar, as pessoas que passam olham-me com olhos de quem vê algo estranho e esse algo estranho sou eu, são noites e noites sem dormir ou mal dormidas, o tempo e a vida foram injustos comigo, levaram-te, levantaram-te quando de noite enroscados frente à lareira com um copo de vinho na mão ouvíamos Anthony and the Jonhson´s e dizíamos “amanhã vamos” e ao seguir ao vamos conjecturávamos montes de sonhos e desejos, uns cumprimos outros ficaram adiados para sempre, para sempre adiados.

Desde que partiste e eu parti, fazem hoje nove dias quatro horas e vinte e três minutos que busco na estrada um qualquer caminho de reencontro e esse caminho tarda em chegar, não sei durante quanto mais tempo vou continuar mas sei que mais tarde ou mais cedo as tuas mãos virão ao meu encontro, eu estenderei as minhas para ti e ficaremos parados, abraçados, sentirei o cheiro doce do teu cabelo, o cheiro daquele champoo que teimavas sempre em comprar na Loja dos Perfumes porque dizias “é o cheiro que gostas” e eu no teu ouvido dizia baixinho num tom de amêndoa “pois é”, agora aqui neste largo que não sei onde fica estas memórias gritam-me aos ouvidos e sei que uma duas lágrimas teimam em soltar-se por baixo dos Ray Ban que me ofereceste na última Primavera e eu em troca te levei a Sintra e andámos os dois a colher imensas flores silvestres que chegados a casa colocaste numa jarra no hall de entrada “é para que nunca mais esqueçamos este dia” e eu na minha idiotice “vão secar” “meu parvinho não sabes que as flores silvestres são eternas?”, abracei-te pela cintura e beijámo-nos, dei-te ou deste-me a mão e fomos sentar no sofá vermelho ouvindo apenas a música que brotava de nós.

Decido caminhar para o café de portas abertas no largo tentando deixar no caminho estas recordações que voltarão forçosamente a surgir, estas ou outras mas nas quais ambos seremos sempre a personagem principal, entro e nas mesas e no balcão pessoas tomam galões, cafés, chás e comem torradas e bolos diversos, a minha entrada provoca uma convergência de olhares, chega-me até a parecer que se faz um súbito silêncio, que as palavras de jornais e revistas deixaram de ser lidas para ser eu o alvo da leitura de todos aqueles olhos, noutros tempos isso acontecia mas era quando entrávamos ambos, talvez invejassem o nosso sorriso cúmplice as nossas mãos dadas ou a tua imensa beleza, hoje não é disso que se trata, sou eu, eu e o meu estado lastimável que move os olhos em direcção a mim, chego ao balcão “uma Sagres gelada”, colocam-me na frente eu com as minhas mãos sujas limpo o gargalo e bebo-a de um trago, peço outra e a cena repete-se, “quanto é?” “três euros” ponho uma nota de cinco em cima do balcão e trazem-me dois euros que enfio num dos bolsos traseiros das Levi´s, saio sabendo que sou perseguido pelos olhares e depois tudo voltará à normalidade comezinha daquele café, talvez quando chegarem aos empregos comentem que viram um individuo muito estranho de manhã a beber cerveja, tudo isso e o resto se me tornou indiferente, entro no carro e faço tudo o contrário de quando cheguei, sem a menor noção do que faço carrego no acelerador e sigo pela estrada em frente sem sequer pôr o cinto de segurança, tenho pressa de te encontrar, do porta luvas tiro uma garrafa e emborco um trago de rum, acendo um SG Ventil, as árvores passam por mim a grande velocidade naquela estrada estreita de dois sentidos e a velocidade das árvores é cada vez maior, camiões carregados de fardos de feno passam por mim, fazem sinais de luzes, apitam, nada me demove tenho que te encontrar, apesar dos óculos que me ofereceste e que nunca mais tirei o Sol fere-me e faz com que por vezes feche os olhos, num soslaio vejo na berma imensas urzes e malmequeres, travo bruscamente num redemoinho de pó e saio para colher um ramo, são para ti quando te encontrar, pouso-o no teu banco que apesar de não estares é e será sempre o teu banco, tal como parei arranco noutro redemoinho de pó, os camiões passam as árvores passam e eu continuo indiferente aos sinais de luzes e buzinadelas, prometi a mim próprio que só pararia quando te encontrasse, vejo um sinal de stop e tenho a lucidez suficiente para parar, os outros condutores fazem sinais com os dedos e chamam-me nomes, espero uma aberta e continuo em frente, não sei se a viagem será longa ou curta mas sei que vai ter fim, abro a janela para que o ar que entre me seque o suor de muitos dias, tantos quantos disse no inicio, automaticamente ligo o rádio, “Hope theres someone” a nossa canção, entendo-o como um sinal divino de proximidade carrego mais no acelerador e as árvores e o trânsito em sentido contrário aumenta bruscamente de velocidade, passo por uma brigada da GNR estacionada que automaticamente acende os pirilampos e me começa a perseguir, não paro, não posso parar, se ainda te não encontrei não posso parar, vejo uma saída à direita e enfio-me por ela numa tentativa vã de os despistar, bebo mais um trago e acendo mais um cigarro, parece-me que do nada surgiu nevoeiro, os pirilampos e as sirenes perseguem-me, carrego no acelerador até ao fundo, “porque me perseguem estes gajos se só te quero encontrar?”, sinto um pneu do carro embater violentamente num buraco da estrada, o carro eleva-se dá duas voltas no ar e um pinheiro robusto caminha velozmente ao meu encontro, sinto e ouço o barulho da chapa retorcida, fecho os olhos, um liquido quente e viscoso escorre-me da boca, sinto-me adormecer, sou acordado por uma brilhante luz branca, esfrego os olhos como quando acordamos, não quero acreditar no que vejo mas é verdade, no meio dessa luz branca ao meu encontro vens tu com a jarra de flores silvestres do hall de entrada, tinhas razão as flores silvestres são eternas, apanho o ramo de malmequeres e urze que colhi para ti, saio ao teu encontro, dou-te as flores e abraçamo-nos, o cheiro do teu cabelo é o mesmo, não sei quanto tempo ali ficamos abraçados, pegas-me na mão e levas-me contigo com o mesmo sorriso de felicidade que sempre te emoldurava o rosto, não dizemos palavra nem é necessário, finalmente ao fim de nove dias seis horas e quarenta e três minutos, posso parar de te procurar, a minha busca deixou de ser incessante, finalmente posso respirar-te de novo e agora sei que nada nem ninguém fará que eu ou tu voltemos à estrada na busca um do outro, estamos juntos, ficaremos eternamente juntos.

A Ida à Missa


Hoje quando fui à missa, costumo ir ao sábado que é menos concorrido e consigo sempre arranjar lugar para me sentar ao contrário dos domingos em que a lotação está sempre esgotado como num Benfica Porto mas aqui na versão deus contra o diabo mas sem bandeirinhas coiratos ou bifanas. Há um árbitro, o padre, e alguns fiscais de linha, sacristão e acólitos.

Devo ter chegado quase no fim porque o árbitro, perdão, o padre estava com um copo de vinho na mão ergeu-o e bebeu de um trago, sinal que não era zurrapa nenhuma, depois agarrou num prato que tinha umas coisas brancas, as hóstias, e disse “aproximai-vos e comei este é o corpo de deus” óbvio que não fui, primeiro não sou canibal, olá Manuel de Oliveira, segundo, não como restos gosto de chegar a um bom restaurante tipo o “Farta Brutos” por exemplo olhar para o cardápio e mandar vir uma boa feijoada com entrecosto enchidos e tudo acompanhado por um ou mais jarros de tinto mas isto não interessa minimamente o que interessa é que fui à missa e lá me sentei muito sossegadinho a ouvir o que o padre dizia mas conclui que afinal sempre tinha chegado no fim porque o padre “ide e que o senhor vos acompanhe” as pessoas levantaram-se saíram e eu ali feito parvo à espera de um senhor, eu preferia uma senhora, que me acompanhasse mas nada até que de repente um dos árbitros veio ter comigo “não se importa de sair que temos que fechar a igreja” “eu?, eu estou à espera do senhor” “de mim” “não, daquele que seu patrão falou” “oh meu irmão, isso é uma figura de retórica significa que o senhor está sempre presente” aí comecei a ficar chateado pra já sou filho único como é que ele me podia chamar irmão depois não sei o que é retórica, a igreja é tão rica que até se dá ao luxo de utilizar palavras caras, e pior é que se o senhor está sempre presente porque é que nunca o vi em lado nenhum? “vá lá chamar o seu patrão ou o gerente ou quem você quiser que daqui não saio sem a companhia do senhor” “de mim?” “não seu parvo daquele que o seu patrão falou” “oh filho já lhe disse que era uma figura de retórica””mau mau mau lá está este outra vez com palavras caras e ainda há bocado era irmão e agora sou filho, quem é que ele julga que é?” pus-me de pé olhei-o nos olhos e “vá chamar o seu patrão já disse” “ o senhor padre não pode vir está a mudar de roupa” “não faz mal eu espero”, aquele meu tom autoritário deve ter resultado porque ele fechou a igreja e entrou por uma porta lateral que penso conduzir aos balneários, perdão vestiários.

Passado um bocado, não muito, apareceu o padre já vestido à civil com um fato cinzento camisa branca e uma cruz na lapela, como não conhecia aquele emblema perguntei “que clube é esse? Não é português pois não?” “meu filho isto não é clube nenhum significa que sou padre” “olha outro a chamar-me filho” mas desta vez deixei passar porque me lembrei do Valter Hugo Mãe e do “Filho de Mil Homens” e até se podia dar o caso, apesar da minha mãe apesar de ser uma mulher muito certinha eu ter sido alvo de alguma intervenção divina e ter sido concebido pelo meu pai  alguns anjos serafins e querubins e mais alguns elementos da santa madre igreja, apesar de no C.U., significa Cartão Único não estejam já prái com pensamentos pecaminosos, constar filho de Henrique Monteiro Cândido e Ester Gabriela de Jesus Ferreira mas pronto como disse deixei passar e disse “eu só estou à espera que o senhor me acompanhe e ele ainda não veio ter comigo” “meu filho quando disse isso queria dizer que ele está sempre connosco” apalpei-me todo nos bolsos e tudo não fosse ele ser anão e ter-se metido no bolso das calças mas nada não o encontrei em lado nenhum pensei então que ele devia ser como o homem invisível das bandas desenhadas que lia quando era puto foi então que o padre disse “mas se quiser acompanho-o à porta” “já almoçou?” “não por acaso ainda não” “quer vir ali almoçar ao coelho da rocha?”, falei no “Coelho da Rocha” porque o dono é meu amigo e quando o vou cumprimentar à hora das refeições acabo sempre por comer à pala “por acaso até calhava bem que já tenho a barriga a dar horas” disse ele numa linguagem nada eclesiástica, e lá fomos.

“Então que é feito de ti que nunca mais apareceste” olha sabes como é ando por aqui e por ali e não tem calhado” “vejo que trazes um amigo” “não é meu amigo é o padre ali da igreja que disse “que o senhor vos acompanhe” e como o senhor nunca mais vinha decidiu substitui-lo” “ah tá bem querem almoçar?” “é pá por acaso até já estou a ficar com fome” “então sentem-se ali que mando já servi-los” sentámo-nos  disse para o padre “vamos comer “coelho à coelho da rocha que é daqui” e com o polegar e indicador apertei o lóbulo da orelha “pode ser”, veio o empregado “então que é que os senhores desejam?” “são duas de coelho” “e para beber?” “pode ser Pêra Manca”, lá ficamos ali em conversa de ocasião até que chegou a comida e o sacana do padre comia bem e bebia melhor, mandámos vir mais uma de vinho e outra e outra até que nos refastelámos na cadeira e o empregado solicito se aproximou “vão desejar sobremesa?” eu como estava em presença de um religioso pedi barrigas de freira ele não sei se por gosto se por querer manter a religiosidade pediu papos de anjo.

Acabámos arrotámos, ali não fica nada bem, e saímos “ e se fossemos até à casa paroquial beber uma aguardente que trouxe lá da terra?” disse o padre “bora nessa Vanessa” se ele me tratava por filho eu também o podia chamar como quisesse, o passeio apesar de largo era estreito para nós dois e o nosso caminhar ziguezagueante mas a casa era ali bastante próximo fica mesmo ao lado da igreja.

Chegámos, ele abriu a porta “francamente senhor padre é sempre a mesma coisa quando tem companhia” “quem é esta?” “é a Gertrudes que está encarregue da casa e de outros servicinhos” disse ele piscando o olho malandro “ ah tá bem”, apareceu a Gertrudes com a garrafa dois cálices e uma travessa com queijo às fatias e bocados de pão à qual nos lançámos como cães esfaimados, e tínhamos acabado de almoçar faria se o não tivéssemos, mas a voracidade era ainda maior no que diz respeito à aguardente, era mesmo boa, “o que vale é que não tenho mais nenhuma missa hoje” “ e se fossemos às putas?” “a “Gertrudes matava-me” como é evidente fiquei todo lixado que quando bebo dá-me práli, mas como um dia não são dias fiquei ali a beber  a beber e a fazer companhia ao padre que já estava em descalço e em tronco nu e mal se percebia o que dizia, a Gertrudes por vezes assomava com a cabeça à porta “é sempre isto maldito bêbado” “oh Gertrudes não te zangues deixa lá o homem beber o seu copinho” “pois mas quem fica a perder sou eu que só sirvo para limpar a casa” “oh Gertrudes que não seja por isso que a gente pode brincar um bocadinho” “deixe-se disso que você também tá bêbado” “pois tou e depois?” amandei-me logo a ela e foi um regabofe do caraças durante não sei durante quanto tempo em que valeu tudo menos arrancar olhos.

“oh Gertrudes Gertrudes ajuda-me aqui a levantar” “é ele veste-te e vai-te embora”, assim fiz, saí com os sapatos na mão para não fazer barulho, chegado à porta, era já de noite, calcei-os cambaleei até ao jardim da Parada, apanhei um táxi.

- “é pá Calçada dos Mestres faxavor”