Terreiro do Paço

quarta-feira, 7 de maio de 2014

40 anos

Há quarenta anos tinhamos tanto de ti Éramos um povo amordaçado, acorrentado Porque tínhamos tanto de ti. Nessa manhã clara e radiosa, apesar da morrinha que caía Como se querem todas as manhãs felizes A minha mãe ainda cheia de ti, veio acordar-me Dizer-me que por tua causa tinha de ir Tinha de ir para onde tinha de ir. Há quarenta anos tínhamos tanto de ti Podias ser amor, tens o mesmo numero de letras Letras diferentes, palavras diferentes, sentimentos diferentes Como te disse podias ser amor Mas até o amor como aliás tudo o resto nos era proibido As canções que cantávamos eram quase ciciadas Como as palavras, os gestos escondidos na esperança de dizer Porque tínhamos tanto de ti. Há quarenta anos tínhamos tanto de ti Vivias em nós como o sangue que nos corre nas veias Mas não eras nós nem fazias parte de nós Eras um furúnculo bolorento e fétido Que velhos caducos de velhos nos impunham Mas nessa manhã clara e límpida, apesar da morrinha Um grupo de bravos enfrentou-te e provaste o teu sabor Amargo de fel. Há quarenta anos deixámos de ter tanto de ti Foste tu e todos os velhos que passaram a ter tanto de ti Nós saímos para a rua e soltámos gargantas, cantámos, dançámos Tinhamo-nos visto livres de ti Com o teu desaparecimento aprendemos uma palavra Uma palavra não, que proferimos como quem canta Hoje querem de novo impor-te Mas sabemos e queremos dizer não. Como te disse podias ser amor Tinhas o mesmo numero de letras Letras diferentes, palavras diferentes, sentimentos diferentes Não começas com a como quem escreve amor A tua palavra começa por uma letra cheia de Peniches e Tarrafais Começas por m da palavra medo, mas já nada temos de ti E agora que de novo nos querem impor-te diremos não Um não conjugado com a força de quem diz o verbo amar.

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