Terreiro do Paço

sábado, 1 de setembro de 2012

A Corrida


Páro o carro, desligo a ignição, travo-o, saio, cá fora é um largo imenso por onde correm folhas arrastadas pelo vento que sopra forte, são talvez oito da manhã ou por aí, não sei o tempo que é nem tão pouco me importa, tenho o cabelo desgrenhado, barba por fazer, camisa fora das calças e do bolso traseiro roto das jeans caem moedas que não me preocupo em apanhar, as pessoas que passam olham-me com olhos de quem vê algo estranho e esse algo estranho sou eu, são noites e noites sem dormir ou mal dormidas, o tempo e a vida foram injustos comigo, levaram-te, levantaram-te quando de noite enroscados frente à lareira com um copo de vinho na mão ouvíamos Anthony and the Jonhson´s e dizíamos “amanhã vamos” e ao seguir ao vamos conjecturávamos montes de sonhos e desejos, uns cumprimos outros ficaram adiados para sempre, para sempre adiados.

Desde que partiste e eu parti, fazem hoje nove dias quatro horas e vinte e três minutos que busco na estrada um qualquer caminho de reencontro e esse caminho tarda em chegar, não sei durante quanto mais tempo vou continuar mas sei que mais tarde ou mais cedo as tuas mãos virão ao meu encontro, eu estenderei as minhas para ti e ficaremos parados, abraçados, sentirei o cheiro doce do teu cabelo, o cheiro daquele champoo que teimavas sempre em comprar na Loja dos Perfumes porque dizias “é o cheiro que gostas” e eu no teu ouvido dizia baixinho num tom de amêndoa “pois é”, agora aqui neste largo que não sei onde fica estas memórias gritam-me aos ouvidos e sei que uma duas lágrimas teimam em soltar-se por baixo dos Ray Ban que me ofereceste na última Primavera e eu em troca te levei a Sintra e andámos os dois a colher imensas flores silvestres que chegados a casa colocaste numa jarra no hall de entrada “é para que nunca mais esqueçamos este dia” e eu na minha idiotice “vão secar” “meu parvinho não sabes que as flores silvestres são eternas?”, abracei-te pela cintura e beijámo-nos, dei-te ou deste-me a mão e fomos sentar no sofá vermelho ouvindo apenas a música que brotava de nós.

Decido caminhar para o café de portas abertas no largo tentando deixar no caminho estas recordações que voltarão forçosamente a surgir, estas ou outras mas nas quais ambos seremos sempre a personagem principal, entro e nas mesas e no balcão pessoas tomam galões, cafés, chás e comem torradas e bolos diversos, a minha entrada provoca uma convergência de olhares, chega-me até a parecer que se faz um súbito silêncio, que as palavras de jornais e revistas deixaram de ser lidas para ser eu o alvo da leitura de todos aqueles olhos, noutros tempos isso acontecia mas era quando entrávamos ambos, talvez invejassem o nosso sorriso cúmplice as nossas mãos dadas ou a tua imensa beleza, hoje não é disso que se trata, sou eu, eu e o meu estado lastimável que move os olhos em direcção a mim, chego ao balcão “uma Sagres gelada”, colocam-me na frente eu com as minhas mãos sujas limpo o gargalo e bebo-a de um trago, peço outra e a cena repete-se, “quanto é?” “três euros” ponho uma nota de cinco em cima do balcão e trazem-me dois euros que enfio num dos bolsos traseiros das Levi´s, saio sabendo que sou perseguido pelos olhares e depois tudo voltará à normalidade comezinha daquele café, talvez quando chegarem aos empregos comentem que viram um individuo muito estranho de manhã a beber cerveja, tudo isso e o resto se me tornou indiferente, entro no carro e faço tudo o contrário de quando cheguei, sem a menor noção do que faço carrego no acelerador e sigo pela estrada em frente sem sequer pôr o cinto de segurança, tenho pressa de te encontrar, do porta luvas tiro uma garrafa e emborco um trago de rum, acendo um SG Ventil, as árvores passam por mim a grande velocidade naquela estrada estreita de dois sentidos e a velocidade das árvores é cada vez maior, camiões carregados de fardos de feno passam por mim, fazem sinais de luzes, apitam, nada me demove tenho que te encontrar, apesar dos óculos que me ofereceste e que nunca mais tirei o Sol fere-me e faz com que por vezes feche os olhos, num soslaio vejo na berma imensas urzes e malmequeres, travo bruscamente num redemoinho de pó e saio para colher um ramo, são para ti quando te encontrar, pouso-o no teu banco que apesar de não estares é e será sempre o teu banco, tal como parei arranco noutro redemoinho de pó, os camiões passam as árvores passam e eu continuo indiferente aos sinais de luzes e buzinadelas, prometi a mim próprio que só pararia quando te encontrasse, vejo um sinal de stop e tenho a lucidez suficiente para parar, os outros condutores fazem sinais com os dedos e chamam-me nomes, espero uma aberta e continuo em frente, não sei se a viagem será longa ou curta mas sei que vai ter fim, abro a janela para que o ar que entre me seque o suor de muitos dias, tantos quantos disse no inicio, automaticamente ligo o rádio, “Hope theres someone” a nossa canção, entendo-o como um sinal divino de proximidade carrego mais no acelerador e as árvores e o trânsito em sentido contrário aumenta bruscamente de velocidade, passo por uma brigada da GNR estacionada que automaticamente acende os pirilampos e me começa a perseguir, não paro, não posso parar, se ainda te não encontrei não posso parar, vejo uma saída à direita e enfio-me por ela numa tentativa vã de os despistar, bebo mais um trago e acendo mais um cigarro, parece-me que do nada surgiu nevoeiro, os pirilampos e as sirenes perseguem-me, carrego no acelerador até ao fundo, “porque me perseguem estes gajos se só te quero encontrar?”, sinto um pneu do carro embater violentamente num buraco da estrada, o carro eleva-se dá duas voltas no ar e um pinheiro robusto caminha velozmente ao meu encontro, sinto e ouço o barulho da chapa retorcida, fecho os olhos, um liquido quente e viscoso escorre-me da boca, sinto-me adormecer, sou acordado por uma brilhante luz branca, esfrego os olhos como quando acordamos, não quero acreditar no que vejo mas é verdade, no meio dessa luz branca ao meu encontro vens tu com a jarra de flores silvestres do hall de entrada, tinhas razão as flores silvestres são eternas, apanho o ramo de malmequeres e urze que colhi para ti, saio ao teu encontro, dou-te as flores e abraçamo-nos, o cheiro do teu cabelo é o mesmo, não sei quanto tempo ali ficamos abraçados, pegas-me na mão e levas-me contigo com o mesmo sorriso de felicidade que sempre te emoldurava o rosto, não dizemos palavra nem é necessário, finalmente ao fim de nove dias seis horas e quarenta e três minutos, posso parar de te procurar, a minha busca deixou de ser incessante, finalmente posso respirar-te de novo e agora sei que nada nem ninguém fará que eu ou tu voltemos à estrada na busca um do outro, estamos juntos, ficaremos eternamente juntos.

Sem comentários:

Enviar um comentário