Tenho saudades de quando os meus olhos encontravam os teus e
juntos formavam um lago que tanto podia ser o do Campo Grande, Jardim da
Estrela ou mesmo numa versão mais modesta o do Jardim da Parada com a sua Maria
da Fonte, tenho saudades de quando nada dizíamos e os olhos eram as palavras
que trocávamos e mesmo de boca fechada tínhamos imensas conversas, tu com ss
tuas dúvidas e eu com as minhas certezas feitas de nada, tenho saudades de que
quando as nossas mãos se encontravam e partiam à descoberta de lugares idílicos
que poderiam ser em qualquer lado, um café, um cinema, um lugar cheio de gente
onde apenas eu e tu nos encontrávamos, tenho saudades dos teus lábios quando
procuravam os meus ou mesmo quando os meus encontravam os teus.
Tenho saudades das nossas altercações que terminavam num
longo e comprido abraço feito de línguas ciosas uma da outra, tenho saudade de
o teu pequeno coração de andorinha palpitar em uníssono com o meu, tenho
saudade de ti dos teus cabelos despenteados pelo vento e penteados pelos meus
dedos, tenho saudades dos sonhos falados juntos, da viagem à Noruega desses
sonhos em que colávamos as mão dadas nos fiordes e dizíamos ai com a
temperatura da água, tenho saudades do Tibete que sonhámos com o “Sem Olhos em
Gaza”, tenho saudades do toque de telemóvel personalizado que me dizia seres
tu. Tenho saudades e tudo o que me resta saudade e a memória triste daquele
telefonema descaracterizado onde uma voz descaracterizada do outro lado me
disse que tinhas tido um acidente e estavas em Santa Maria ainda perguntei se
era grave mas só me disseram para lá ir.
Cheguei, perguntei por ti e nas urgências disseram-me que
tinhas sido colhida por um eléctrico no Cais do Sodré, devias ter ido comprar
flores coisa que tanto gostavas, e estavas nesse preciso momento a ser operada,
“mas é grave?” perguntei com o desespero a toldar-me a voz “lamento mas não lhe
posso dizer nada suba ao bloco e tente colher informações” corri em direcção ao
elevador e subi praguejando contra a lentidão do elevador, tinha pressa de
estar contigo, de falar contigo, de apertar a tua mão pequena na minha, o
elevador chegou ao piso, corri até ao bloco e perguntei por ti à primeira
pessoa que encontrei, não se podia entrar no bloco, passada uma eternidade de
poucos momentos a pessoa a quem tinha perguntado por ti voltou “o sr. dr, já
vem falar consigo” esperei, angustiei, mesmo sendo proibido fumei um dois sei
lá quantos cigarros.
Passado demasiado tempo apareceu um médico de bata verde e
com uma toca na cabeça. “é o sr. Fernando Monteiro?” “sou” “a operação correu
bem mas a srª sofreu um traumatismo craniano com derrame da massa encefálica”
“mas vai ficar bem? diga-me que vai ficar bem” “não lhe posso dizer isso a srª
está em coma e as próximas vinte e quatro horas são cruciais, porque não vai
até casa e volta amanhã?” “não, não e não, posso pelo menos vê-la vê-la?”
“venha comigo mas é mesmo só vê-la” seguiu, estavas deitada numa cama com tubos
a saírem-te por tubo o que era orifício, as máquinas monitoravam-te as funções
vitais numa harmoniosa sequência de curvas e picos, o teu rosto sorridente
estava inchada mas eras tu apesar da deformidade, os cabelos louros compridos
tinham sido cortados e no lugar deles uma imensa ligadura branca, dei-te um
beijo na testa e disse até já, sem esperança que houvesse até já, dormi nos
bancos de madeira esperando que me viesses despertar como sempre fazias com um
beijo e uma carícia mas tal não aconteceu. Depois de muitos anos acordei sem ti
a meu lado, levantei-me de um salto e toquei na campainha da porta que me
separava de ti, abriram a porta, era uma enfermeira “como é que ela está?” “só
um momento que o sr dr já vem falar consigo”, passado pouco tempo o mesmo
médico do dia anterior apareceu com um ar conpungido “como é que ela está dr.?”
“venha até ao meu gabinete” fui atrás dele abriu uma porta deu-me a primazia
“entre e sente-se faz favor”, sentei-me, “infelizmente os danos cerebrais eram
demasiado graves e a srª não chegou a acordar, faleceu durante o sono” “não não
não”, as lágrimas corriam-me compulsivamente pela cara, limpei a cara com a
manga do sobretudo, “sofreu? Posso vê-la dr.?” “agora ainda não mas depois
levo-o lá, quer que lhe mande vir um café ou um chã?” “não obrigado dr enquanto
não a posso ver vou apanhar um bocado de ar e volto já” “mais ou menos uma hora
enquanto a arranjam”, saí contive as lágrimas e vi o teu sorriso os teu olhos
os teus cabelos, vi a tua recordação, pareceu-me mesmo que me agarravas a mão
sem vontade a largar, mas não eras tu era a tua memória aqui presente.
Vim até à saída do hospital, nas senhoras que na porta vendem
flores comprei-te uma rosa vermelha e telefonei aos nossos amigos que também
não queriam acreditar, o céu cinzento pairava em todas as nossas memórias na
certeza que não mais ouviríamos o teu sorriso, fumei mais um cigarro e
dirigi-me onde estavas, toquei na porta e veio o médico “venha” levou-me até
ti, mesmo sem vida eras linda, já não tinhas tubos nem aparelhos a
monitorarem-te, apenas as ligaduras permaneciam na tua cabeça, beijei-te as mãos
os lábios a testa, deixei-te a rosa vermelha nas mãos frias, voltei-te as
costas e vim-me embora, tinha o coração do tamanho de uma noz, não chorei, fui
para a nossa casa vazia, eras tu que a preenchias, comecei a receber
telefonemas até que desliguei o telefone, tinha que preparar a tua definitiva
partida, escolhi a roupa, fui à funerária e escolhi um caixão, queriam
vender-me flores mas não aceitei, só eu sabia as que gostavas, fui à florista
que depois as entregaria, não fiz velório era-me doloroso ver-te ali inerte,
ouvi a musica que gostávamos qualquer coisa da Nina Simone, não dormi, de manhã
fiz a barba vesti-me e fui para a morgue do hospital, os nossos amigos já lá
estavam, as rosas orquídeas e tulipas também, trouxeram-te, puseram-te no carro
funerário, partimos rumo ao cemitério, a urna abriu pela ultima vez “para quem
se quisesse despedir” eu só queria estar a sós contigo para te dizer tantas
palavras que te não tinha dito, fui o último a despedir-me de ti, deixei-te um
ultimo beijo nos lábios. Fecharam a urna, era inútil dizer-te até já, a
primeira pazada de terra em ti, aquele som é um pesadelo que ainda hoje me
persegue, aquele som é perfeitamente horrível como um trovão que apenas a nós
nos atinge, digo-te adeus, os nossos amigos foram partindo eu fui ficando até
haver só terra, pela última vez adeus, passo a passo chego à saída, apanho um
táxi digo a morada, chego à porta do prédio, toco na campainha esperando que
respondas sabendo de antemão que como resposta apenas terei silêncio, meto a chave
na entrada sou apanhado pelo homem da barbearia “os meus sentimentos”
“obrigado”, subo quatro lanços de escada, abro a porta e entro, o silêncio
impera, ponho o Cohen e mando vir uma piza, tomo uma tua fotografia em mãos que
afago, sento-me e espero pela piza que há-de chegar. Penso em ti e na solidão
em que me deixaste, o Cohen toca e a piza chega, como-a e bebo uma cerveja.
Acabo, separo o lixo como gostavas, visto uma parka, saio para a rua e
apetece-me ir para perto de ti mas sei ser em vão, nada te trará, subo a rua e
no cimo tenho que escolher uma de três ruas, nem penso meto por uma delas, que
importa? Não tenho a tua mão minha.
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