Terreiro do Paço

sábado, 4 de outubro de 2014

Insónia

Penso que estou insone, penso não tenho mesmo a certeza, há exactamente 23 dias 18 horas e quatorze minutos que não sei o que é pregar olho, já me tinha acontecido quando era mais novo por duas ou três vezes mas nunca com estas proporções, nessa altura a minha insónia resumia-se a quatro ou cinco dias sem dormir, o que ao contrário de agora em que a insónia parece não ter qualquer efeito físico ou intelectual sobre mim naquela altura, quando isso acontecia, ficava um perfeito zombie o meu corpo era um farrapo de vontade e a minha mente parecia ter desertado para parte incerta, era uma cabeça oca e sem qualquer espécie de vontade de transmitir aos outros órgãos do corpo fosse a ordem que fosse, agora pelo contrário até me sinto mais leve, a minha mente fervilha de ideias o que obrigaria, em situações normais, o meu corpo a um esforço sobre humano para lhe poder obedecer. Tudo começou no dia dezoito de Março às três e quarente e três, lembro-me porque nessa noite tinha sido a despedida de solteiro de um amigo e na mesa de cabeceira mesmo ao lado do candeeiro tenho um despertador Sony que vai desfiando as horas em números verdes, estava a dormir quando senti que algo me tocava no ombro, ainda adormecido tentei afastar com a mão aquela coisa que me batia no ombro mas por mais persistente que fosse a coisa era ainda mais persistente, abri então os folhos e com surpresa vejo um pequeno gnomo de barrete vermelho que dançava enquanto teimosamente me tocava no ombro “acordei-te?” perguntou ele, tentei responder que sim mas as palavras ficaram-me presas na garganta, esforcei-me um pouco mais mas as palavras, teimosas, insistiam em não sair. Tentei pôr-me numa outra posição, mais cómoda, mas também não me conseguia movimentar estava invadido por uma paralisia que apenas não me afectava a visão e audição, “fica tranquilo que quando acabar de dançar, e agitava ancas e pés e braços e o corpo todo freneticamente, me vou embora e podes voltar à tua normalidade, normalidade seria dormir de novo pensei, ainda pus a hipótese de ser um sonho mas o gnomo e a sua dança ao som de uma musica para mim inaudível eram demasiado reais e ele parecia não se cansar, “deve ter tomado anfetaminas” pensei, “não, não tomei anfetaminas” respondeu ele como se tivesse ouvido os meus pensamentos, não engoli em seco porque mesmo esse movimento me era impossível, “sabes estou quase a ir-me embora e tu podes continuar com a tua vida”, olhei para o relógio e eram quatro horas e cinquenta e três minutos, quando tornei os olhos para o gnomo já este tinha desaparecido, senti então todo o meu corpo voltar à normalidade, comecei timidamente primeiro pelos dedos dos pés e vendo que obedeciam dirigi-me a todo o meu corpo, tudo estava normal, pus-me em posição fetal, que é a posição em que durmo, mas nada o sono tinha-se ido com o gnomo, também não era grave costumo levantar-me por volta das seis era uma questão de me levantar mais cedo e ler mais cedo no computador as resenhas dos jornais diários, mas em vez disso fui assolado por uma tremenda sede e vontade de fumar, dirigi-me ao frigorifico tirei uma Sagres e acendi um SG Filtro, sentei-me na sala a olhar para o candeeiro da sala onde uma borboleta, talvez uma traça, parecia bailar como o gnomo tinha bailado no quarto, desviei o olhar, poisei a cerveja na mesinha e levantei-me para levantar os estores, como era uma Primavera quase Verão abri também a janela que o calor já se fazia sentir e vi que o dia já clareava, a partir do equinócio da Primavera os dias tornam-se sucessivamente maiores até ao solstício de Verão em que começam de novo a recrudescer, olhei para o relógio de pendulo cinco e quarenta e sete, apaguei o cigarro no cinzeiro, acabei a cerveja dirigi-me à cozinha e fiz um café, sentia-me incrivelmente fresco como se tivesse tido a melhor noite de sono da minha vida, “que estranho devia estar todo roto” pensei, bebi o café, despi os calções e t shirt e fui tomar banho e fazer a barba, sequei-me no velho toalhão preto, sem qualquer preocupação de escolhas vesti umas jeans e um qualquer polo, saí para a rua fui ao único café que aquela hora estava aberto, mandei vir uma bica e um folhado de carne e fiquei por ali a fazer tempo até chegar a hora de tomar o autocarro que me levaria ao trabalho, o dia passou perfeitamente normal, até parecia mais ligeiro, no emprego na fábrica de micro ondas onde tinha a meu cargo a secção de publicidade a malta só dizia “é pá tira esse sorriso da cara”, nem me tinha apercebido que sorria, e passei o dia todo a sorrir e a inventar frases para a campanha publicitária ao novo micro ondas todo xpto que arrancaria em simultâneo com o lançamento no mercado, sentia-me bestialmente criativo, intelectualmente parecia que tinha caído no caldeirão do Obélix, os slogans jorravam abundantemente, guardei-os no computador para quando o gerente mos pedisse lhe pudesse apresentar para todos os gostos e feitios entretanto chegaram as cinco da tarde, despedi-me com um “até amanhã malta”, meti-me no autocarro até ao Carmo, bebi umas imperiais e comi uns croquetes na Trindade fazendo tempo para o jantar, normalmente janto por volta das oito, oito e meia, passo primeiro pelo Pingo Doce onde compro qualquer coisa que seja só descongelar ou compro mesmo comida feita, foi o que fiz nesse dia, comprei um bocado de bacalhau com natas um pack de seis Sagres e aí vou eu até casa onde nada nem ninguém me espera. Cheguei, liguei o televisor como faço todos dias mas devia haver qualquer problema com o cabo já que só transmitia estática com aquele barulho caracteristisco, borrifei e desliguei, tirei um disco ao acaso pu-lo no leitor e dirigi-me à cozinha, puz duas Sagres no congelador e as outras no sitio normal, coloquei um individual na mesa despejei o bacalhau sem aquecer nem nada, o garfo a faca o guardanapo, dei tempo a que a cerveja ficasse fresca e sentei-me a comer, acabei, levantei e lavei a louça, pu-la a escorrer no lava-louça e fui até à sala onde me sentei a ler a Visão da semana passada enquanto ia dando uns tragos de Jack Danniel´s, era o que fazia todos os dias antes de me deitar por volta da meia noite, e entretanto a meia noite chegou, o sono é que não, mais por ritual que por outra coisa despi-me vesti os calções e a t shirt desviei o lençol amarrotado e deitei-me, dei várias voltas na cama, olhei para o relógio, uma e dezassete, três e vinte e três, quatro, cinco seis e eu sem pregar olho mas também não sentia necessidade, se alguém naquela altura me convidasse para um jogo fosse do que fosse estava perfeitamente apto, levantei-me fiz o que fazia todos os dias e lá me dirigi para o trabalho, quando passei pelo espelho que há no átrio olhei para ver se estava com olheiras mas antes pelo contrário até parecia que tinha a pele mais nova “que estranho”, encolhi os ombros apanhei o elevador e chegado ao ao meu andar saí e dirigi-me à minha secretária, esse dia correu, bem como os subsequentes até hoje, de uma forma perfeitamente normal, aí por volta do sexto dia sem dormir pensei em ir ao médico mas já sabia o aconteceria, dava-me uma receita para aviar uns quaisquer suporiferos e assim fui directamente à farmácia, poupei o dinheiro da consulta que converti em packs de Sagres, e comprei uma caixa de Zolpidem. Depois de jantar lá fui até à sala, agora não utilizava o quarto senão para mudar de roupa, vi um bocado de televisão, bebi uns Jack Danniel´s li mais um bocado do livro que estava a ler, tinha-me tornado nestas noites de insónia um leitor compulsivo, e por volta das onze e meia tomei, como o farmacêutico me tinha dito, um comprimido, à meia noite fui-me deitar, mas qual dormir qual quê?, ainda tomei mais dois ou três comprimidos mas o meu corpo parecia imune a essas drogas legais, levantei-me enchi o copo e fiquei com de olhos no livro à espera de clarear. E assim teem sido os meus dias até hoje, já lá como vos disse no inicio 23 dias dezoito horas e quatorze minutos sem dormir mas hoje vou mudar de hábitos, um colega e amigo tem um velhinho Fiat 600 que não utiliza para nada e vou-lho pedir emprestado, assim à noite quando o sono não vier meto-me no carro, faço-me à estrada e vou até à terra dos gnomos na busca do gnomo dançarino pode ser que se o encontrar ele desfaça este feitiço, porque de um feitiço se deve tratar e eu volte a ter uma boa noite de sono, não é que me faça falta mas já não me lembro como é.

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